sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Procura-se


As pessoas o procuravam para falar da vida. Ele tinha alguma coisa que deixava as pessoas confortáveis para falar. Uma contava sobre a decepção. Outra sobre a frustração. Outra ainda sobre a busca. Sobre a loucura. Sobre a vontade. Sobre as dúvidas. E sobre tudo o que incomoda a alma humana. Ele ouvia, pensava e falava o que achava que devia falar ou calava o que achava que devia calar.

E assim, o menino foi aprendendo sobre os incômodos mais comuns do ser humano. Descobriu que pessoas completamente diferentes umas das outras são capazes de repetir questões absolutamente iguais.

- Onde foi que eu errei?
- Por que eu insisto?
- Até quando?

Questões soltas no ar como um apelo. Ninguém quer resposta. Todos querem a questão. E quase todos seguem fazendo as perguntas erradas e esperando as respostas certas. Ele percebeu que há uma necessidade humana de colocar no outro o erro, a falha, o problema. Ninguém diz “eu sou uma roubada”. Quando diz, sempre aparece outra pessoa para comentar “você só fala isso porque sabe que o outro vai querer dar jeito em você”.

E o tempo vai passando e as pessoas continuam repetindo os mesmos padrões aceitos por todos. Assim, todo mundo pode ter pena de todo mundo e fica decretada a cumplicidade do fracasso nas relações.

Isso assusta o menino. Ele só quer se entender melhor e oferecer o que tem de melhor para as pessoas que ele acredite que entenderiam, que gostariam e que teriam o melhor delas para oferecer também. Simples, mas aparentemente incompreensível. As pessoas esperam os padrões conhecidos, a zona de segurança delas. Ele não tem isso para oferecer. Ele acredita nele e não no senso comum. Ele age como gosta e não como esperam que ele aja. Ele fala sobre sentimentos, sobre sensações, sobre sonhos e as pessoas não entendem.

Durante muito tempo o menino acreditou que ele tinha sérios problemas. Se todo mundo faz do mesmo jeito, o errado é ele. Pelo menos foi isso que ele aprendeu cedo. Chegou até a tentar ser como todo mundo, mas não deu nem para a saída. Quando se deu conta, estava fazendo as perguntas que ele ouvira tantas vezes. Ser como esperavam que ele fosse fazia dele apenas mais um. Muito pouco, quase nada.

Parou de esperar dos outros a cumplicidade da fantasia. Parou de cobrar afinidades onde não havia. Parou de questionar os outros. Começou a olhar para ele mesmo e a se divertir com isso. Começou a acreditar que o grande amor está nele mesmo e que a única busca possível é por outra pessoa que também tenha um grande amor dentro de si e que queira juntar os dois amores em um só.

Isso não tem receita. Mas também não tem “mimimi”. Isso só vai acontecer quando tiver que acontecer. Se não fosse assim, ele publicaria um anúncio:

PROCURA-SE uma mulher linda por dentro e por fora, que goste de fantasias, que saiba manifestar amor de várias formas, que sorria para o sol e se emocione com a lua, que seja apaixonada pela natureza, que queria voar com balões vermelhos nas mãos, que tenha valores e princípios dos quais se orgulhe, que goste de bichos e de plantas e de flores e de mato e do mar, que não tenha medo de amar nem de ser amada, que beije bem, que ame bem, que surpreenda, que provoque, que goste de viajar, que assuma seus erros, que aponte meus defeitos, que me ajude e que peça ajuda, que durma nos meus sonhos e que sonhe comigo, que me encante e seja encantadora, que sorria, que chore, que grite, que gema, que suspire, que se arrepie, que não tenha vergonha nem vergonhas, que acredite. Que me procure. ENTRAR EM CONTATO URGENTE. Ass. Menino


quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Ei, você aí.


Já falei o quanto você é importante na minha vida? É. Você mesmo! Você que está lendo essas letras, palavras, frases, linhas e parágrafos. Você é muito importante pra mim. Sei que já devia ter falado isso antes, mas é que no dia a dia da vida a gente se perde e esquece de dar valor ao que realmente tem valor. Você por exemplo!

Escrevo porque transbordo sentimentos. Escreveria em um papel se o computador não fosse tão mais fácil. Deixo os dedos baterem nas teclas e as palavras vão saindo. Escrevo quando sinto vontade, quando a tal da inspiração vem me visitar ou quando a criatividade pede licença pra se manifestar de algum jeito. Escrevo da forma como gosto de ler. Não procuro palavras difíceis, não procuro pegadinhas inteligentes, não acho que isso vai trazer alguma coisa a mais para nenhum dos meus textos. Então escrevo como quem conta uma história porque é assim que os escritos vêm pra mim.

Normalmente um texto demora uns vinte minutos para sair por inteiro. Quando acabo, e só sei que acabou porque a história fechou, paro e respiro. Aí é que vou ler o que falei. Mudo algumas coisas, concordâncias, palavras repetidas, pontuação. Dou uma geral. Aí publico na internet e torço para que você venha ler.

Já me perguntei se escrevo para me mostrar. Mas não é isso. Não preciso me exibir e nem acho que meus textos sejam assim tão maravilhosos que possam fazer a diferença na maneira que você me vê. Não é para me mostrar. Já me perguntei se escrevo bem ou mal. Mas na verdade pouco importa, o que me importa é escrever.

Cheguei à conclusão que escrevo para deixar escrito. Não sei se você me entende, mas é isso. Escrevo para que as letras fiquem juntas, formando uma ideia na qual eu acredito. Escrevo para que essas ideias fiquem escritas. Deve ser como um músico que compõe melodias e letras que só vão acontecer depois na vida de alguém. Ou como um pintor que reúne as cores da maneira que mais gosta e faz com que elas se transformem em expressões capazes de emocionar outras pessoas.

Já ouvi gente dizendo que me exponho demais. Músicos e pintores também se expõem. E, para mim, fica sempre a questão: - O que é me expor demais!?! Saio nas ruas e me exponho, como alguma coisa e me exponho também, defendo um ponto de vista e lá estou eu de novo na exposição. Claro que me exponho. Gosto do que estou fazendo com a minha vida, não vejo nenhuma razão para guardar isso só para mim.

Ah, mas eu não vim aqui falar de mim. Vim agradecer e dizer que você é muito importante. É, você aí que lê as coisas do jeito que você é e não do jeito que eu escrevo. Sim, eu sei que a Anais Nïn falou isso antes, mas é no que eu acredito. E você continua vindo ler porque tem um tanto de você em tudo o que escrevo. Tem um lugar comum que nos une. Por isso você é tão especial para mim.


Mas... Falando assim, estou falando para muita gente. Muita gente especial não faz ninguém realmente especial... Deve ser o que você está pensando. E, de novo, não é como vejo. No momento em que você está lendo, estou falando só com você. Além disso, uma coisa é dizer que você é especial e importante, outra é você ler isso. Faz assim: para um minuto e pensa nas pessoas que você acha especiais... Pensou? Agora vai lá e diz para essa pessoa que ela é demais, que ela faz você ver coisas e acreditar em coisas que não veria ou acreditaria se ela não existisse. Vai lá. Conta para ela que ela é bacana, que você tem orgulho dela, que ela é uma parte do que você é e que isso faz toda a diferença. Faz um bem danado e, por isso, obrigado!


quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Bolo Mármore


Sexta-feira à noite e o menino seguia seu ritual. Depois do jantar, depois do café e depois que os pais já tinham ido para o seu quarto, ele seguia para a cozinha. Reino da Araci, uma das personagens que fizeram dele o que ele é hoje.

Havia uma grande bancada perto do fogão. Lá, ela quebrava os ovos e os misturava com leite, farinha e fermento. Batia tudo junto, sempre da esquerda para a direita. Usava uma colher de pau e mantinha o mesmo ritmo. Dizia que bolo era assim, tinha que ser sempre na mesma velocidade e sempre para o mesmo lado: “senão desanda”. Separou metade da massa e adicionou chocolate em pó. Tornou a mexer até que ele estivesse no ponto. Untou a forma, despejou a parte branca primeiro e por cima a parte com chocolate. Chamou o menino para passar uma faca por toda a massa e explicou que aquilo daria o aspecto de mármore ao bolo de toda semana.

Araci gostava de uma boa conversa. Contava sobre sua infância no interior de Minas. Falava sobre as brincadeiras da sua época. Os banhos no riacho. As festas do interior. O menino ouvia e imaginava, como se tivesse participado de tudo aquilo. Araci era um exemplo para ele. Um exemplo diferente do que via da cozinha para dentro de casa. A infância pobre não havia tirado seu brilho. Vivia sorrindo, vivia de bom humor com tudo e com todos.

Um dia, o menino pediu que ela contasse uma história da sua terra. Ela começou, ainda sem saber onde ia chegar, a falar das amizades de menina. Falava que havia hora para tudo. Tinha hora de buscar água, de ajudar no café, de lavar e estender a roupa para quarar, de tomar banho e de brincar. Era nessa hora que ela saía correndo para encontrar os amigos no ribeirão.

O menino interrompeu para saber se ela explicaria o que era “quarar” e o que era “ribeirão”. Ela riu alto e explicou.

O ponto de encontro era uma mangueira grande e bonita. A melhor sombra que havia por perto e, no tempo certo, a gentil fornecedora das mangas mais doces de que já se ouviu falar por aquelas bandas. No dia, que ela escolheu como dia da história, os meninos e meninas se encontraram para brincar e logo alguém disse: - Vamos brincar de roda!?! E todos se animaram.

“Sapo jururu. Na beira do rio. Quando sapo grita, ó maninha, é que tá com frio...” foi a primeira que cataram dando as mãos e rodando para um lado até começar outra parte “A mulher do sapo, também está lá dentro. Fazendo rendinha, ó maninha, pro seu casamento.”

- Eu não gosto de sapo. Vamos cantar outra!?! E todos riram da menina Araci. E logo começaram a sugerir outros temas, sem soltarem as mãos.

Alguém começou e todos seguiram... “Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar, vamos dar a meia-volta, volta e meia vamos dar” e todos sorriam e cantavam alto, girando, girando.

Mas e a história? Perguntou o menino. Araci riu e logo se viu obrigada a inventar uma.

- É que naquele dia apareceu por lá um moço bonito montado a cavalo. Nós ainda cantávamos e rodávamos quando ele surgiu do nada. Que susto. Quando vimos o cavalo alazão dele demos um grito e saímos correndo e ele começou a rir, apeando.

- Calma crianças. Só parei para ouvir vocês cantarem e tomar um pouco d’água.
- Moço, que susto!

E todos acabaram rindo e se aproximando do moço com cara de forasteiro. Todo mundo queria fazer uma pergunta. De onde ele vinha. Para onde ia. Qual o nome do cavalo. Quantos dias de viagem. Tinha visto um saci. Ia ficar ali aquele dia.

E o moço ia respondendo as perguntas, uma a uma. Só a Araci é que não tinha perguntado nada, mas também não perdia resposta alguma. Ela era um pouco mais velha que os outros meninos e o moço era um pouco mais novo do que parecia ser quando chegou.

- E você? Não tem pergunta para mim?
- Tenho, mas não sei se posso fazer...
- Ora, por que não? O que você quer saber?

Araci queria saber se ele tinha uma namorada, mas não perguntaria sobre isso na frente de todos. Então teve que pensar rápido numa outra pergunta. Você já almoçou? E todos riram. Mas ele não tinha almoçado e tinha fome. A pergunta soou como um convite. E Araci foi caminhando com o moço em direção a sua casa, com o cavalo levado pela rédea solta. Eram só dez minutos caminhando, mas o tempo foi suficiente para começarem uma longa conversa. Descobriram que ele era apenas três anos mais velho que ela. Ele contou que há muito já não brincava de roda e que trabalhava desde cedo para ajudar a família. Parecia um moço direito. E era.

Chegando a casa, Araci pediu que ele esperasse enquanto ia falar com a mãe. Sabia que ela não negaria um prato de comida a quem quer que fosse. Dizia sempre que água e pão não se deve negar a ninguém. Araci o chamou para entrar, apresentou a mãe e explicou que o pai estava na lida, mas não demoraria.

O moço foi ficando. O pai chegou. Conversaram. Riram. Contaram histórias. E o tempo passou fácil, até que a mãe a chamou na cozinha e disse: - Faça um bolo para ele. Assim, ele não vai esquecer de você.

- Um bolo? Mas que tipo de bolo?
- Faça um bolo mármore, que mistura duas massas. Uma branca e outra de chocolate. As massas sozinhas não tem tanta graça, mas juntas são lindas e fazem de cada fatia um pedaço diferente.


E foi assim que o menino aprendeu porque ela gostava tanto de fazer esse bolo. E até hoje se lembra dela com carinho por conta disso.



terça-feira, 27 de agosto de 2013

Grandes Amores


O menino queria descobrir como surgem os grandes amores. Era sua grande agonia. Queria encontrar a felicidade dividida em beijos que pudessem durar para sempre. Decidiu procurar alguém que soubesse mais sobre isso. Alguém que o ajudasse a descobrir, pelo menos, por onde começar.

...

De noite, deitado. Sua mãe começou com o tradicional “Era uma vez...” e ele não seguiu adiante. Seu pensamento voou longe e ele imaginou que era assim que surgiam os grandes amores. Lá pela quinta ou sexta página, ele interrompeu a mãe e perguntou: - Mamãe, quando será que começa a minha história? Quando será a minha vez de “Era uma vez...”? A mãe sorriu com o carinho terno das mães e disse: - Meu filho você não precisa de história para dormir, sua imaginação é maior e mais fértil do que a dos autores dos contos de fadas. Fique tranquilo, sua vez vai chegar na hora certa. Feche os olhos e viaje nos seus sonhos. É assim que começa.

E o menino sonhou, encontrou, descobriu, amou, entregou-se, viveu e acordou. E esqueceu.

O tempo passou e ele foi conversar com um amigo sobre sua busca. O amigo falou da música. Disse que os grandes amores sempre começam com uma trilha sonora. Perguntou se havia entre os discos da estante uma música que fosse para ele a trilha sonora do grande amor que ele procurava. Havia. Ligaram a vitrola e colocaram a faixa principal para tocar. O amigo disse: - Agora, feche os olhos, sinta a música e me diga em quem você pensa. Ele sentiu e disse.

- Pronto, você já tem seu grande amor. Agora é só lutar por ele.

E o menino lutou, buscou, conversou, confessou, pediu, recebeu, beijou e sentiu. E passou.

Menos menino, ele seguiu procurando. Seus poetas escreviam sobre os grandes amores nos livros que ele sorvia com prazer. Um falava sobre o sorriso e a flor. E ele começou a olhar atentamente para os sorrisos. Um dia encontrou um dos grandes, imenso, que expunha além dos dentes brancos, um brilho, um encanto e duas covinhas no rosto de uma menina. Achou que lá estava o grande amor. Foi logo comprar flores. Queria transformar a poesia na receita do grande amor. Fechou os olhos e sonhou.

E o menino seduziu, conquistou, viajou, sorriu, abraçou, presenteou. E se enganou.

Cansado de errar, mas nunca cansado de tentar, o menino seguiu na estrada da vida atento aos sinais. A vida foi se complicando. Ladeiras imensas diminuíam seus passos na subida e tiravam seu controle na descida. Colheu as flores que brotavam selvagens na beira da estrada, vibrou com elas por alguns instantes, mas logo descobriu que o grande amor não estava lá. Foi em frente.

Um dia seus olhos encontraram outros olhos. Ele tentou desviar. Não conseguiu. O olhar continha um mistério único. Sentia-se mergulhado em um sonho, ainda que acordado. As palavras entravam e saiam no meio da conversa e ele não conseguia parar de olhar. Tentava descobrir onde estava. Parecia enfeitiçado. Quis fechar seus olhos, mas não pode. Os outros olhos eram caleidoscópios de sentimentos e ele, fascinado, sentia seu coração bater cada vez mais forte. De repente descobriu: não eram os olhos, era o olhar.
Sorriu. Sentiu seus próprios olhos brilhando. Tomou fôlego e pediu: - Me conta uma história. E ela começou assim: “Era uma vez...”

E o menino chorou.



segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Quarto da Bagunça



Nossa! Esse quarto tá uma bagunça.
 Já têm uns dois anos que ninguém vem limpar.


O coração do menino era muito complicado. Tinha espaço para um monte de gente, mas era uma bagunça incrível. Misturava filha, pai, mãe, o resto da família, amigos, namoradas, amantes, amigas, conhecidos, bichos, músicas, paisagens, lugares, experiências, tinha de tudo. Por isso, um dia ele resolveu reformar o próprio coração. Conversou com um arquiteto especialista e explicou o problema.

- Sabe o que é? Eu preciso de um coração com mais organização. Tem que caber todo mundo e tem que ter espaço de sobra para os que estão chegando. Mas tem que funcionar direito, com corredores de circulação, área de lazer, sala de estar, etc.

E o arquiteto trabalhou em um projeto incrível. Criou até jardins para as crianças brincarem, criou um grande salão de festas para todos se encontrarem, criou uma cozinha para que ele pudesse preparar as comidas que gostava de servir, criou quartos e mais quartos onde cabiam todos. Tinha uns muito grandes, como o da sua filha – era o maior – e o da sua mãe e o do seu irmão. Tinha também uma capela para que coubessem seus mortos. A única coisa que ele não gostou foi da sala de jogos. Explicou para o arquiteto que ele não costumava jogar no coração e transformou a tal sala numa imensa sala de jantar.

Depois de pronto, o menino foi visitar os quartos. Queria ver todas as pessoas e saber se estavam bem, se tinham ficado confortáveis, se precisavam de alguma coisa. Entrou em um e em outro e viu que estava tudo bem arrumado. Ficou feliz com isso. Continuou passeando pelo coração e encontrou um quarto diferente, fechado à chave.

Bateu na porta, mas ninguém respondeu. Bateu novamente e nada. Pôs a mão no bolso e pensou: - O coração é meu, devo ter a chave em algum lugar. Tirou um grande molho de chaves e começou a testar uma por uma, até que finalmente achou uma chave que entrou, girou e abriu o quarto.

Nossa! Esse quarto está uma bagunça. Já têm uns dois anos que ninguém vem aqui. As coisas ainda estão como estavam. Na cama ainda havia marcas de amor. Na cabeceira, fotos. No armário, como em letra de música, o paletó enlaçando o vestido, o sapato pisando no outro. Mas o que mais impressionou o menino é que o cheiro ainda era o mesmo. Fechou os olhos e respirou fundo. Sentiu como se voltasse no tempo. Chegou a ouvir o apelido carinhoso ressoando no ar e, quando sentiu que uma lágrima ia escorrer, abriu os olhos novamente.

Não tinha ninguém no quarto que ele já sabia de quem era. Chamou pelo nome, ela não respondeu, chamou pelo apelido e nada. Olhou novamente para o quarto abandonado e pensou que seria bom limpá-lo. Pensava que assim ele poderia ser ocupado novamente, por outra pessoa, por outros cheiros, por outras fotos, outras músicas, outros apelidos.

Pensou. Olhou novamente para o quarto e saiu trancando com duas voltas na chave. Foi ver o resto da obra, sempre em construção.


domingo, 25 de agosto de 2013

Fragmentos



Parte do raio que me parte não parte de parte alguma.

...

O bom de escrever sem rumo é não precisar chegar a lugar nenhum.

...

Queria tomar poesia aos goles.
Um pileque de Leminski on the rocks.
Doses industriais de Vinicius
E um tanto de Drummond and tonic.

...

Sabia que o sabiá não sabia assoviar?
Sabia que saber demais é pra quem não sabe nada?

...

Na rádio uma musa e uma música

...

Enchi da lua cheia
Minguei na sombra do depois
Novamente nova mente
Crescente é o sol.

...

De quem são as poesias?
Musa, essa é sua!

...

De um lado o espelho
Do outro o reflexo
E eu, olhando perplexo.

...

Pronta pra pintar
Pede poeta
Pinta. Põe poesia.

...

O balão voa no ar
Falta apenas um instante
Pra poesia cortar o barbante

...

Palavras escritas
Versos rabiscados
Poesias inspiradas
Poemas iluminados

Palavras
Sonhos de grafite
Palavras
Nunca aceitam meus palpites
Palavras
Letras abusadas
Palavras unidas
Jamais serão perdidas.


Sonhei com você

Sonhei com você
Criança sorrindo
Menina brincando
Sonhei com você
Correndo no campo
Cabelo brilhando
Música ao fundo
Correndo e cantando

Sonhei com você
E sorri. E lembrei.
Via o que ninguém vê,
Percebia você por dentro
Enxergava o seu melhor
Em cada movimento.

Sonhei com você
E também estava lá
E também sorria
Também brincava e corria.
Também ouvia a música
Que você cantava

Sonhei com você
Acordei feliz



quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Caminho de Poeta


- E se for só fantasia? Se for só ilusão?

Se for fantasia será a melhor fantasia. Se for ilusão, será a mais intensa das ilusões. Mas não existe essa coisa de “só”. A fantasia merece respeito, ela é muito melhor do que sua irmã, a realidade. A ilusão também é bacana, a desilusão é que é o problema.

...

O menino ainda vivia um momento só seu. As pessoas apareciam e ele desaparecia. Conhecia uma menina aqui, outra ali e seu coração de menino seguia quieto, controlado pela necessidade de se recompor, pelas lembranças do que vivera recentemente. Sua incompetência emocional havia aflorado novamente. Ele havia se deixado levar pelo encanto dos momentos felizes e não se deu conta do que acontecia. A relação que ele tanto quis que tivesse dado certo, não deu. Ele precisou entender. Não queria ser injusto com ela. Tampouco queria ser injusto com ele mesmo. E assim: foram e voltaram, gritaram e falaram, sorriram e choraram. Na última conversa ele entendeu melhor e tentou explicar melhor. A eterna equação entre o que se espera e o que há para ser dado não fechava mais. E isso não implicava no erro de um ou na culpa do outro. Apenas não havia mais solução.

Ele escolheu se apaixonar imediatamente. Por ele mesmo, é verdade.

O que ele descobriu é que a sedutora fantasia, da qual ele jamais abriria mão, não podia mais ser a única a escolher seus próximos passos. Ela mandava demais, sabia demais, seduzia demais. A fantasia do menino lhe permitia olhar para pessoas que ele mal conhecia e encontrar no fundo de seus olhos um mundo de sentimentos, desejos, deslumbres e sonhos. A fantasia mostrava muito claramente que a pessoa era mais do que parecia ser. Muitas vezes a própria pessoa, que por tanto tempo se escondera dentro de si mesma, não entendia quando ele falava fácil do que sentia por dentro daqueles olhos. Sempre foi assim. Ele sempre conseguiu ler as pessoas no olhar. Era como uma maldição que ele queria transformar em encanto.

Seguia seu caminho de menino sem procurar nada. Estava pronto para conhecer novas meninas, olhar novos olhos, mas não queria. Queria saber mais e melhor sobre o grande amor, razão da sua eterna busca. Por vezes, ele se convencia de que não existia tal amor. Que tudo não passava de mais uma das suas fantasias. Em outras horas, tinha certeza de que o grande amor havia cruzado seu caminho, uma centena de vezes, e ele sequer notou. Confundia-se. Um toque de pele, um cheiro, um olhar, um beijo, um sorriso e de alguma forma ele encontrava o grande amor. Começou a achar que o grande amor não era singular, era plural. Ele havia encontrado várias partes do grande quebra-cabeças do seu amor. O que ele nunca conseguiu foi juntar tudo em uma só pessoa.

Seguia seu caminho de poeta. Pensava sobre a inutilidade da lua cheia para quem não ama. Pensava sobre o absurdo de um pôr-do-sol que não foi visto. Pensava sobre a viagem que não faria sozinho. Pensava sobre as flores que murchariam na floricultura porque ele não as daria. Pensava sobre os versos que não faria.


Seguia seu caminho de poeta.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Anjo de Guarda


Sua avó materna tinha verdadeira paixão pelo Anjo de Guarda. Dizia sempre que ele devia pedir ao seu Anjo tudo aquilo que desejasse desde que fosse justo. Contava que o Anjo estava sempre ao seu lado e que era ele que evitaria qualquer problema mais sério.

Havia uma oração para ele, havia uma pequena imagem que ficava ao lado de sua cama. Havia sempre a presença do Anjo nos dias de menino. A oração, ele não conseguia decorar, mas nem por isso deixava de conversar com seu Anjo. Todas as noites, o ritual era sagrado: primeiro uma Ave Maria, depois um Pai Nosso, depois um bate papo com Deus, com quem o menino possuía grande intimidade e por fim uma conversa íntima com o Anjo de Guarda.

Contava como foi o dia. O que fez e o que deixou de fazer. O que descobriu de novo e o que não entendeu. Contava sobre as pessoas que conheceu e sobre as atitudes que tomou. Sabia que o Anjo havia estado ao seu lado todo o dia, por isso mais comentava do que contava. Dizia coisas como: - Você viu só aquela hora em que atravessei a rua? Tomei o maior cuidado e mesmo assim o carro quase me pegou. Ainda bem que você estava lá, obrigado!

O menino era assim. Sempre que sozinho, fosse onde fosse, permitia-se conversar com anjos, enxergar milagres, testemunhar mágica, presenciar seres imaginários frequentando o seu mundo. A ele, tudo era permitido.

O tempo passou, mas nem por isso ele deixou de rezar o tanto que rezava na infância. Nem por isso deixou de conversar com seu Anjo de Guarda, nem por isso deixou de ser menino. 

Ainda ontem a noite ele o chamou para conversar. Uma conversa diferente, é verdade. O menino queria agradecer o tanto que o Anjo já tinha feito por ele. Queria dizer que era bom saber que ele estava do lado. Perguntou ao Anjo o que aconteceria quando ele morresse. Será que o Anjo ganharia novo protegido? Será que ele se tornaria aprendiz de Anjo de Guarda e viria trabalhar para ajudar os outros? Riram, ele e seu Anjo. E o sono chegou, e ele rezou:

Santo anjo do Senhor,
meu zeloso guardador,
já que a ti me confiou,
a piedade divina,
sempre me rege, me guarde,

me governa, ilumine.


terça-feira, 20 de agosto de 2013

Cambalhota


Era dia de sol e ele queria estar na praia. Mas na cidade onde estavam praia não havia. Havia clube, havia parques, havia praças, mas praia não. O sol brilhava tão forte que ele pediu, implorou, bateu pé e disse para a mãe que queria ir ao clube. Queria nadar. Queria sentir seu corpo solto na água que tanto o fascinava. Água que ao mesmo tempo apara e envolve. A água sempre lhe trouxe encanto. Desejava a piscina ciente que não teria as ondas que adorava. As ondas eram para ele a parte viva da água.

Tanto fez, que a mãe deu um jeito de levar-lhe ao clube. Era dia de semana, mas as crianças de férias não sabiam, nem queriam saber. No clube, o cheiro do cloro e o familiar barulho da algazarra infantil deixaram o menino feliz. Ele queria tirar logo o short e a camiseta e mergulhar na piscina grande. Lá ele sentia-se maior, havia mais o que explorar, era o lugar em que os meninos eram separados dos homens e ele tinha pressa.

Largou sua roupa e seu chinelo em uma mesa e saiu correndo como qualquer menino. Quase não ouviu o conselho de sempre. Não corra. Com a velocidade da corrida, tomou o impulso necessário para o pulo mágico das crianças, rumo ao espaço. Ao tirar os pés do chão, sua fantasia começava. Ele já não era mais apenas um menino, aquela não era apenas uma piscina, o tempo agora lhe pertencia.

Com as duas mãos para frente, em forma de seta, ela ganhava o fundo do seu reino. As águas eram claras e no fundo escondiam toda sorte de animais míticos que ela era capaz de produzir. Havia mesmo de um tudo: sereias, serpentes, dragões e monstros escoceses de férias no Brasil. Mentalmente ele avisava a todos os seres que estava lá. Eles que se cuidassem. Qualquer descuido poderia ser fatal. O menino era justo, mas era menino e era rei das profundezas da piscina. Precisava manter a ordem.

Logo, um primo veio lhe falar. Veio propor uma brincadeira sem saber que o menino já estava seriamente comprometido com suas responsabilidades reais. O primo, com vocação para imitar grandes seres aquáticos disse ser um cachalote e saiu nadando como baleia para outra parte da piscina. Foi melhor assim, ele poderia se machucar na batalha que estava prestes a começar. Mentalmente, o menino chamou seus aliados mais poderosos, como o tubarão negro, o golfinho cinza, a baleia cor de rosa e os peixes-espada prateados. Avisou que todo cuidado era pouco, mas que o monstro venusiano precisava morrer. Bradou seu grito de guerra e comandou o início do ataque.

Uma sangrenta batalha era travada na sua imaginação. A todo o momento, ele afundava, batia o pé no chão e voltava à tona pra respirar. Embaixo d’água, com os olhos abertos ou não, dava ordens para que o ataque obtivesse sucesso. Mas o monstro possuía poderes incríveis e muitos dos seus soldados foram sendo abatidos impiedosamente.

Já preocupado com o desenrolar da briga, pediu mentalmente ajuda a Netuno. Pediu conselhos. O velho dono do mar lhe apareceu com tridente em punho e disse: - Você só tem uma chance. Vou lhe ensinar uma arma secreta que vai destruir o monstro e trazer de volta seus soldados. Fascinado, o menino pedia que fosse rápido e o dono dos mares lhe falou sobre a cambalhota mágica. São três vezes para trás e uma para frente. Mas não se esqueça. Agora vá logo porque o tempo está contra você.

O menino tinha medo de dar cambalhotas na piscina. Já havia tentado e já havia engolido muita água. Mas o ato de coragem precisava ser executado imediatamente. A voz de Netuno ecoava e ele partiu para cumprir sua tarefa. Prendeu o fôlego, afundou, bateu o pé no chão e ganhou impulso para a primeira cambalhota de costas, seguida de mais uma e outra mais. Tomou novo fôlego e se atirou de frente na água para a cambalhota mais difícil. Ele não hesitou e conseguiu realizar o movimento mágico.

Mergulhou para conferir os efeitos da sua façanha e viu seus soldados revivendo e o monstro se contorcendo antes de sumir, diluído na água da piscina.

...   ...   ...

- Meu filho chega. Vamos embora que ainda tenho muito que fazer hoje.
- Puxa mãe, mas eu nem comecei a brincar ainda... Posso só mostrar pra você a cambalhota que eu aprendi!?!



segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Visita da Menina


A menina foi visitar os sentimentos do menino. Ela sabia onde ele os depositava na forma de letras que se sucediam, uma atrás da outra. Um dia, acordou pensando nele e foi ver o que havia ali para ser lido.

Esse menino não tem jeito, pensava ela. Quantas coisas ele escreveu para mim, só para mim. Ele ainda pensa em mim, pensa que me ama mesmo sabendo que tudo o que passamos deixou nosso amor para trás. Esse menino não tem jeito. Olha só... Uma poesia. Ele fala de coração, fala de noites e de sonhos. Fala de músicas que nos foram tão importantes. Fala de mim a cada nova frase. Ele não aceita a separação, o fim do nosso amor. Ele faz de conta que ainda me ama e faz de conta que ainda me importo com os sentimentos dele. Ah, que menino tolo. Esse menino não tem jeito.

O que é isso agora? Ele resolveu escrever em meu nome. Usou sentimentos que eu escondo para se colocar em mim? Ele não tem esse direito. Ele fala do amor que eu não vivi, fala dos sonhos que abandonei, fala dos medos que eu tive. Ele não pode fazer isso. Sinto-me exposta. Por que ele faz isso? O que ele acha que vai me fazer sentir agora? Sinto nos seus escritos todo tipo de sentimento que uma pessoa pode sentir. Por que ele faz isso?

Não me lembro dessa história. Não, não foi comigo que o menino viveu isso. Mas a história é linda. Ele escreve com a ternura que era só minha. Ele deu o amor que recusei a outra pessoa. Ele não podia fazer isso. Ele tinha que fazer isso. Sinto-me triste e feliz ao mesmo tempo. Quero ver o menino sorrir, ganhar o mundo. Tenho orgulho dos sentimentos dele, sentimentos que não suportei, não entendi. Que história linda ele escreveu. Queria que fosse para mim.

Sonhos. Ele adora falar dos sonhos. Vontade de puxar suas orelhas e dizer bem alto que ele tem que parar de sonhar e começar a viver. Ele não me escutaria. Ele fala de sonhos comigo, como se eu também sonhasse. Ele fala com doçura. Será que ele não tem ninguém para dizer a ele que isso não vai leva-lo a lugar algum? Será que aquela amiga querida não lhe conta a verdade triste? Será que as pessoas olham para ele com pena por conta do tanto de fantasia que ele carrega? Será que não é fantasia? Será que ele está bem? Será que outra pessoa vai dizer a ele que quer sonhar junto? Será que ele vai me esquecer?

Beija-flor. Por que ele fala do beija-flor. Meu beija-flor foi lhe dar bom dia e nem me avisou. Entrou na sua sala como se fosse coisa comum. Chegou bem perto. Parou no ar e no tempo em sua frente e lhe sorriu. Meu beija-flor sentiu sua falta. Ainda bem que ele não sabe que o beija-flor é meu.

O que estou fazendo aqui? Este lugar não me pertence. O menino escreve para todas as pessoas, não pensa mais em mim. Fui só mais uma. Ele fala do grande amor, mas não fala em mim. Ele fala de sentimentos, mas não são meus. Fala de flores e descubro que elas não são minhas. O que estou fazendo aqui?

Vou escrever. Vou colocar tudo no papel e quem sabe um dia mostro a ele que eu também sinto um monte de coisas. Não sinto por ele, sinto por mim. Não vivo mais os sonhos dele, vivo minha vida. Sou mais forte sem ele. Encontrei meu porto seguro em mim, não preciso mais do seu colo. Ele vai ver só. Isso não vai ficar assim. Vou vingar cada palavra com outra palavras, minhas palavras. E, um dia, vou lá esfregar na cara dele que também sinto, que também penso, que também escrevo, que também...

Por que é que esse menino ainda vive em mim? Não volto mais aqui. Mas vou rezar por ele. Vai menino, vai encontrar outro caminho. Já abri sua gaiola, já não quero você por perto. Voa! Voa para fora de mim. Voa para longe de mim. Ah... Esse menino não tem jeito.



Vida de menino é assim.

Os dias passam a seu modo e, como na vida de qualquer menino, os altos e baixos se sucedem. Um simplesmente não conhece o outro. É como o dia e a noite que dependem um do outro. Os dias altos e baixos também são assim.

Em um dia baixo, o menino é capaz de ficar todo esquisito. Antes de tudo, sente-se pequeno. Acorda e, ao pular da cama, fica com a sensação de que o chão está mais longe. Quase um precipício. Quando seus pés finalmente tocam o solo ele segue a rotina de todos os dias, bons e maus, em busca de sua caneca de café. Nestes dias até a caneca tem que ser escolhida com cuidado. Basta um simples descuido e ela lhe traz lembranças que ele não quer e estraga o café com o sal das lágrimas. Toma uma, duas e finalmente a terceira caneca esperando que o dia acorde também. Abre as cortinas e procura o sol que se esconde. O sol sempre ajuda. Liga a TV para ter companhia e entra no banho esperando que a água limpe toda sua angústia. Abusa do sabonete. Veste-se com as roupas que encontra sem olhar no espelho. Parte para mais um dia de trabalho enfadonho. Um dia baixo é sempre muito chato e com mais horas do que o necessário. O relógio ainda dorme. As horas demoram mais do que os dias. As conversas parecem tolas e sua paciência lhe abandona.

Em um dia alto é tudo diferente. O menino levanta-se animado, sorriso no rosto. Abre as cortinas antes do café e desvenda o sol nascendo por trás das montanhas verdes. Assiste o nascimento do primeiro raio e lhe dá bom dia! Faz um café forte. Admira sua cor, seu aroma, seu sabor. Alcança a primeira caneca que lhe aparece. Tanto faz. Toma uma, duas, três canecas e cada gole parece melhor do que o anterior. Pega um livro de poesias e lê uma ao acaso e em voz alta para lavar a alma com sentimentos. Depois, entra no banho, onde canta uma canção sem se preocupar nem com o ritmo, nem com a letra, nem com os vizinhos. Escolhe sua camisa favorita, veste-se frente ao espelho e sorri. Perfuma-se. Toma o rumo da rua como quem vai ao circo. Percebe as pessoas no caminho. Sorri generosamente como se o sorriso fosse um carinho e como se ele pudesse acariciar o dia. Pena que as horas voam. Pena que ele não consegue estar com todos de quem gosta tanto. Quando se dá conta já está de volta em sua cama, agradecendo em uma prece o lindo dia que teve.


Os dias são assim. A vida é assim. O menino é assim. 

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Um Buquê de Sentimentos


O menino morava, ainda bem pequeno, em uma rua que tinha por perto uma floricultura. Era seu caminho para os cursos que fazia, era seu caminho para a papelaria, era seu caminho para quase tudo. A cada passada pela loja o menino parava. Era a vitrine mais bonita. Vasos e arranjos dispostos com uma linda mistura de cores vivas. Parava e olhava e sorria.

Escutando um disco na vitrola do pai, ouviu um poeta dizer que: para viver um grande amor era necessário abrir uma conta no florista. Logo, sua imaginação de menino o levou até a loja, onde perguntou o que era preciso para abrir uma conta lá. A dona da loja riu e perguntou quantos anos ele tinha. Ele disse. Ela respondeu que não poderia abrir uma conta a menos que ele fosse um cliente frequente, do tipo que ainda manda flores pelo menos toda semana. Ele agradeceu e saiu pensando no assunto.

Ainda não tinha para quem mandar flores. Amava sua mãe, mas não era esse tipo de flores que ele gostaria de mandar. Sua preocupação estava na lição do poeta. Ele sabia que precisava viver um grande amor e queria começar logo. Com tempo de errar algumas vezes, pensava.

O tempo passou e as paixões de infância adolesceram. Um dia, finalmente, ele encontrou a mulher para quem ele gostaria de dar flores. Não teve dúvidas: juntou sua mesada e entrou floricultura à dentro, decidido a encomendar um buquê.

- Bom dia! Preciso mandar flores para uma menina. O que a senhora me sugere?
- Temos rosas, orquídeas, vasos, arranjos... me diga uma coisa: qual o motivo das flores?
- São para a minha namorada explicou, quase tímido, o menino.
- Então as rosas vermelhas são as mais indicadas. Significam paixão. É o que se dá nessas ocasiões.
- Como assim: é o que se dá? Todos os namorados dão a mesma flor?
- Sim. Quando um homem quer dizer à sua namorada que a ama, o que se faz é oferecer rosas vermelhas?
- Preciso pensar mais um pouco. Eu volto mais tarde. Obrigado!

O menino não podia acreditar. Havia um procedimento padrão para a conquista e ele descobriu isso na floricultura. Nunca imaginou que houvesse um ritual. Ficou desapontado e foi conversar com sua mãe para se aconselhar.

A mãe explicou que sim, eram as rosas vermelhas as flores indicadas para demonstrar paixão, mas... Sempre havia um “mas”.

- Sabe meu filho, você não é obrigado a dar rosas vermelhas só porque é o que todos fazem. Você pode escolher a flor que quiser, a que achar mais bonita, a que lhe emocionar mais. Flores são como os sentimentos. Não podemos dar qualquer sentimento para qualquer pessoa. É preciso saber escolher. Ah, mas se escolher as rosas dê uma dúzia de 13 flores, nunca uma dúzia de 12. É outra regra de educação, mas essa é importante e faz a diferença.

Sua mãe esclarecia e confundia. Ele entendeu que podia voltar à loja e escolher o que quisesse, mas não entendeu bem sobre as 13 flores. Logo 13 que ele associava com o azar do número. A conversa serviu para que ele definitivamente não escolhesse as rosas.

Voltou à tarde até a floricultura. A moça o reconheceu e o cumprimentou. Perguntou se havia se decidido. Ele disse que queria olhar com calma. Ela disse que então iria fazer alguns arranjos com as flores do campo que acabaram de chegar.

- Flores do campo? O que são flores do campo?
- Para mim são as mais bonitas. São flores pequenas que nascem nas matas, nos morros, na beira de riachos e próximo às cachoeiras.
- Mas elas nascem juntas? Parecem tão diferentes umas das outras.
- É por isso mesmo que eu gosto tanto delas. Elas nascem separadas, normalmente em fazendas ou sítios repletos de vida. Aí são colhidas aos poucos com cuidado para que não deixem de existir por ali. E, por serem poucas, as pessoas acabam juntando flores de vários tipos para vender tudo junto. Quando chegam aqui, meu trabalho é só juntar as cores do jeito que eu gostar mais e pronto. Os buquês ficam lindos!

A moça falava em flores e ele pensava em sentimentos. Imaginava que cada buquê fosse capaz de juntar sentimentos que nasceram em vários lugares diferentes e que ganharam várias formas diferentes. Sentimentos que nasceram nas matas, sob o sol forte das manhãs. Sentimentos que nasceram nos morros de onde se via o melhor pôr-do-sol. Sentimentos que cresceram à margem de rios onde amantes se amaram. E outros que foram banhados com a alegria que só há nos banhos de cachoeira. Todos esses sentimentos juntos ficam lindos, pensou ele.

- Decidido. Eu vou levar um buquê de flores do campo! Você pode fazer um bem bonito? Bem cheio de sentimentos coloridos!?! – disse o menino que nunca deu rosas à ninguém.



quinta-feira, 15 de agosto de 2013

O que você fez das nossas lembranças?


Guardei. Guardei na gaveta que tinha separado para você. É lá que estão os sonhos que já não sonhamos mais. Lá, entre uma camisa e uma meia, ficam agora as cartas e fotografias que você me deu. De vez em quando abro, sinto seu cheiro, fecho meus olhos e viajo no tempo até seus braços. Me escapa um sorriso no canto da boca. Respiro fundo e torno a fechar.

Joguei fora. Não tinha nada lá pra ser lembrado. De você guardo apenas as mágoas. Guardo o momento ruim em que você anunciou que não era eu a mulher da sua vida, seu grande amor. Joguei no lixo em frente de casa. Não queria aquilo tudo na minha própria lixeira. Joguei em tempo de ver o caminhão passar e levar.

Não mexi nelas. Estão ainda por toda a casa. Há um tanto de nós dois na sala, na cozinha, no quarto. Há de você até mesmo no copo das escovas de dentes. Não mexi nas nossas lembranças, isso faria com elas virassem apenas lembranças.

Troquei. Aprendi que era possível trocar as lembranças por outros momentos, novos, com mais frescor, com mais possibilidades de dar certo. Nossas lembranças não existem mais. Troquei por outras que não são nossas. Seguirei trocando até não ter mais o que lembrar.

Chorei. Sobre cada um dos nossos momentos derramei uma lágrima. E a cada lágrima que derramei ficou uma mancha. Nossas lembranças agora são isso: marcas das minhas lágrimas que você não amparou, não enxugou, não evitou.

Dividi. Preferi não ficar com todas elas. Algumas não me interessam mais, pode levar. Fiquei apenas com as boas lembranças, as lembranças dos nossos momentos, nossos carinhos, nossas gargalhadas, nossos abraços. Dividi entre as boas lembranças e as que não merecem ser lembradas.


Que lembranças?


terça-feira, 13 de agosto de 2013

Balões


Eram balões de gás que eu ia colhendo naquele sonho.

Lembro que andava por uma estrada de flores coloridas e, de repente, me dava conta que lá havia um balão amarelo. Segurava pelo barbante puxava para perto e olhava fixamente para o balão. Que lindo! Minha cor favorita! Olhava-o e o puxava para baixo deixando depois que ele subisse até o limite do barbante. Gostava de vê-lo contra o sol.

Depois de um tempo segui pela estrada.

Mais a frente, perto das margaridas havia outro balão. Dessa vez era vermelho. Bonito e bem cheio de gás. Ele flutuava de uma forma sensual e me permitiu segurá-lo pelo barbante e vê-lo indo e voltando, sem que eu precisasse sequer mexer nele. Fascinante o balão vermelho. Gostava de senti-lo por perto.

Ainda estava só começando a andar, por isso segui.

Com meus dois balões conduzidos pela mão, quase não percebi o balão verde que se escondia perto da grama, mas em contraste com as flores do campo. Era tão puro, tão natural, que cheguei a achar que ele fazia parte da paisagem. Mas ele também estava ao alcance da mão e por isso colhi seu barbante como já havia feito antes e o juntei aos outros dois. Gostava do conjunto que faziam.

O dia ainda estava claro e a estrada seguia, e eu também segui.

Entre as árvores havia uma cerejeira florida e nela preso na altura havia mais um balão. Desta vez: branco. Só o percebi porque as flores lhe faziam moldura. Tomei-o para mim e juntei no meu buquê de balões. Juntos eram cada vez mais lindos. Gostava de me sentir leve levando-os pelas mãos.

Lá em frente havia uma porteira, mas antes mais flores e mais caminhos.

Logo encontrei o que eu procurava. Um lindo balão azul preso entre tulipas. Adoro as tulipas e elas me devolveram o afeto com um balão da cor que faltava. Juntei com os outros. Admirei. Cheguei a sentir o cheiro dos parques de diversão da minha infância e gostei disso.

E segui.

Na porteira, um menino, como eu, me avisou:

- Você não pode entrar com todos os balões! Escolha um. Eu vou furar os outros.
- Furar?
- Sim. Os que você não escolher não servirão para mais nada e por isso vou furá-los

Lembro de pensar que era triste ver um balão furado. Lembro de olhar para o menino. Lembro de sorrir e lembro de abrir a mão lentamente, deixando que todos os balões voassem soltos pelo céu azul. E lembro de dizer:

- O balão certo vai me achar na hora certa.


E segui.


Tão iguais. Tão diferentes.

 
Ser humano, uma espécie fantástica. Capaz de realizar os mais incríveis feitos. Capaz também de destruir tais feitos da mesma forma e ainda mais rapidamente. Ser humano. Isso vale para tudo. Posso falar sobre projetos, planos, construções e posso falar de relacionamentos, valores, compromissos. O ser humano usa a sua capacidade de tomar decisões das mais estranhas formas, todos os dias.

Não, não tenho a menor vontade de falar de política ou de invasões. Minha conversa é sobre sentimento. Minha conversa é sobre a minha incansável capacidade de me surpreender com as pessoas. Pessoas que são o que querem ser, mas só quando lhes convém. Pessoas que descobrem em si a capacidade de mudar de opinião e de mudar de querer. Pessoas que dão meia-volta e seguem como se não estivessem vindo.

Para mim, o mais interessante é perceber que, se em um minuto você é igual a alguém no minuto seguinte você mal o reconhece. De repente, sem qualquer aviso prévio, tudo o que o outro disse ou demonstrou cai por terra.  E eu ainda fico surpreso com isso. Alguns me dizem que é a capacidade de reinvenção do ser humano, como se isso fosse bom. “Fulano se reinventou”. Como assim? Fulano deixou para trás, dentro de alguma gaveta, tudo o que ele era até dois ou três dias atrás? Abriu outra gaveta e depositou ali suas novas esperanças, seus novos valores, seus novos quereres?

E eu ainda me surpreendo. E por me dar conta de tudo isso é que me sinto obrigado a pensar: - Será que eu mesmo já não fiz isso? Será que eu mesmo não mudei de ideia e me transformei em alguém diferente? Já! Confesso que sim! Já me aconteceu de olhar no espelho e ver uma pessoa que não se parecia comigo. Já chorei frente ao espelho enquanto ele ria. E não gostei.

Aprendi com o tempo que é ele quem manda. O tal do tempo é soberano, virtuoso, às vezes covarde, mas sempre sábio. O tal do tempo manda e desmanda. Acelera e reduz. Permite e tira. Entrei num acordo com ele, como na música que ora ao tempo. Combinamos que eu teria por ele mais respeito e ele me devolveria respeito também. Pedi-lhe que se eu ficasse mais tempo com ele, pudesse ter mais dele para mim. Ele aceitou. Disse-me com seu ar maduro, distinto e soberano que ficaria do meu lado.

Um dia, cumprindo o combinado, os relógios pararam. Olhei e todos eles marcavam a mesma hora. Fechei os olhos para rezar, adormeci e o sono me levou para longe. E de lá, pude ver a mim mesmo e a todas as escolhas que fiz na vida. Vi minha infância, vi meus avós, vi meus brinquedos e vi minhas fantasias. Assisti meu primeiro beijo, meu primeiro amor e ao segundo, o terceiro e aos outros também. Matei as saudades de meu pai, seu sorriso, seus conselhos. Ouvi minha mãe me consolar o choro. Vi minha maior alegria no nascimento da minha filha. Vi a mim mesmo perdido. Vi cair. Vi levantar. Vi meu choro na falta do grande amor. Vi minha busca por outros caminhos, outros amores. Vi a mim mesmo cuidando para que fosse cuidado. Vi minha oração com os olhos fechados e acordei. E os relógios seguiam imóveis até que eu dissesse amém.



segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Confuso

 
Ando confuso. Ando pensando em tudo o que há para ser vivido e nas escolhas que faço e nas que deixo de fazer. Acho que é um momento novo. Transformações a caminho. Saturno passando. Sei lá.

Só sei que não sei de nada. Sei que as certezas de ontem são as dúvidas de hoje. Sei que existe uma vida pulsando lá fora com uma intensidade rara. Sei que não há escolha quando o assunto é encarar e viver. Mas, na verdade, só sei que não sei de nada.

Meu coração pulsa todos os dias. Parece o mar. Tem dias em que ele tá tranquilo, me convida para nadar ou quem sabe andar numa dessas pranchas de stand-up. Tem dias em que ele está transparente, enxergo o fundo com uma nitidez única, vejo passarem os peixes, admiro as conchas e com sorte consigo ver até uma estrela. Em outros dias fica tudo turvo, não vejo nada. Às vezes o mesmo mar, tão querido, fica mexido, entra em convulsão e pulsa em ondas desencontradas, ora grandes demais, ora pequenas demais. Nesses dias é melhor só olhar. Mas o mar e o coração guardam segredos. Eu posso tentar entende-los, mas mais não posso.

Ando confuso. Separar o que eu quero do que esperam de mim é uma imensa dificuldade. Quando recebo um carinho desejado devolvo em dobro, fascinado pelo sentimento que não é meu. Mas um carinho gera outro que gera outro e assim por diante até que eu não saiba mais o que me pertence nem o que eu quero. Minha necessidade de aprovação e aceitação ganha contornos incertos. Consigo entender o que a outra pessoa espera, consigo entregar, consigo ser aceito e aprovado. O que não consigo é saber se são essas a aceitação e aprovação que eu estava buscando.

Não é por mal, nem é pensado. Apenas é assim que reajo aos desafios emocionais que se apresentam todos os dias. Coisa de menino. Coisa de menino confuso. Coisa de menino confuso que sofre com isso. A possibilidade do erro essencial dá medo. O medo é o princípio do fim. E, para evitar o medo e os erros essenciais melhor seria se eu não vivesse. Melhor seria ficar em casa pensando no amor que ainda não senti, no carinho que ainda não fiz, no momento que não vivi. E quando penso assim o coração fica mexido que nem mar em dia de ressaca. Me desespera a perspectiva de não viver.

Ando confuso. Ando pensando sobre sentimentos e isso não é bom. Só seria bom se fosse possível sentir meus pensamentos. Mas isto não existe. E por isso, sigo confuso.




domingo, 11 de agosto de 2013

Gente Nova


Música ao fundo. Qualquer música, não importa. O menino acordou com vontade de ser surpreendido pelos sons. Acordou pensando no que a vida estaria preparando para ele dessa vez. Tinha a sensação de que as coisas estavam todas mudando de lugar. Era como se o certo de ontem fosse a dúvida de ontem e como se a dúvida de ontem fosse uma certeza absoluta hoje.

De uma hora para outra conheceu muita gente e, surpreendentemente, elas pareciam vindas para ficar. É sempre assim? A gente percebe que o mundo vai fazer uma manobra radical e, de repente, pessoas novas e interessantes surgem de todos os lados?

Pessoas surgem de formas improváveis. Você pode estar apenas navegando na internet e, do nada, conhecer alguém que aparece numa janela de bate-papo. A pessoa se apresenta. Você se apresenta. Então ela começa a dizer o que pensa sobre você. Como assim? A pessoa tem uma opinião formada? Curioso. Você dá corda e a conversa emenda em outras conversas, e quando você se dá conta, está falando de assuntos íntimos, se expondo sem sombras, mostrando textos e fotos que lhe são caros. E surge uma amizade. Sim, é possível que seja apenas uma amizade. Mesmo que haja certa dose de sedução leonina aqui, outra ali.

Você combina terminar sua semana no seu boteco preferido com a sua amiga preferida e de repente surgem amigos que você já não via há tempos e vão se sentando na sua mesa que cresce. Com eles mais e mais pessoas novas vão surgindo. Você percebe que está com quase vinte pessoas. O papo anima. A bebida desce fácil e, sem que ninguém se dê conta, seus olhos cruzam outro par de olhos lá do outro lado da mesa e pronto. Você quer conhecer, saber quem é, conversar, rir. Não, você não quer se apaixonar e nem mesmo começar outra história de amor à primeira vista. Tudo o que você quer é conhecer o par de olhos e torcer pra que eles enxerguem você como você é. E a bebida continua descendo fácil, sem que a noite pareça ter fim.

Sábado à tarde. Disposição para mais alguns poucos chopps em um boteco do Leblon. Você vai com uma amiga de todas as horas e o boteco está cheio. Encontra os amigos dos amigos que lhe oferecem companhia e um pedaço de mesa para apoiar o copo. A conversa anima. Eles apresentam amigos dos amigos dos amigos e você, que só ia comer um salgadinho e tomar uns dois ou três chopps, emenda um no outro e em outro e quase no final da tarde está em conversas super animadas com um casal que demonstra um carinho raro entre eles e com outro mais novo amigo de infância que você já esbarrara tantas vezes em tantos botecos que era como se já o conhecesse.


É tanta gente chegando junta. Tanta vida pra conhecer. Tanto sentimento pra adivinhar. Tantos momentos que entre uma música e outra, duas canecas de café e um cigarro, o menino agradece a Deus a sorte de ser quem é.


sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Certeza Incerta

Não se tratava mais do amor infantil. O menino chegou à conclusão de que esse já havia morrido. Teve sim, um outro grande amor antes dos últimos, teve sim. Mas comparar aos outros seria o fim. Ops! Desculpe... É que o Angenor volta e meia aparece no seu imaginário.

O menino ainda lembrava com carinho e ternura do seu grande amor. Quase dois anos que já não a via, quase um ano sem trocar uma mensagem que fosse e ele ainda guardava memórias que voltavam todos os dias. Eram as pequenas coisas que voltavam. O acordar, o sanduíche, a vista, o riso fácil. Pequenas coisas.

Mas seu grande amor não era mais amor. O tempo e a distância e as escolhas transformaram o grande amor do passado em uma linda memória. Difícil foi apagar o que não precisa ser lembrado. Difícil foi deixar pra lá as coisas que nunca deviam ter chegado. Demorou. Mas o menino apagou, deixou pra lá e seguiu.

E, mesmo assim, o menino ainda se perguntava: - Se já não há mais amor, por que ainda penso tanto? E ele mesmo respondeu, com a certeza incerta dos meninos, que pensava nela porque fora ela quem definira a sua busca. De uma pessoa com quem poderia ter sido feliz para sempre – como em conto de fadas – ela transformou-se em uma referência de sentimento a ser procurado. Ela já não precisava mais ser procurada, o sentimento sim.

O tanto amar, tanto querer, tanto desejar, tanto, tanto, tanto serviu para mostrar a ele que o amor era maior do que ele imaginara. Ele descobriu que há um sentimento maior que qualquer pensamento. Entendeu a diferença entre carvão e diamante. Percebeu ser maior que sua altura. Compreendeu que o amor lido nos livros, visto nos filmes, escutado nas poesias existia de fato e que era melhor e mais importante do que o amor adequado, comportado, calmo e estável.

Aos poucos, com bastante dor, é verdade, passou a entender que a menina não era o amor e nem mesmo a dona do amor. Ele era o amor e ele era o único dono do amor. E, se o amor lhe pertencia então as possibilidade eram imensas, diversas, ilimitadas. Mas não era fácil lidar com as novas descobertas sobre o amor.

Buscou novas pessoas, conheceu gente linda, gente importante, gente bacana, gente maior e mais especial do que ele acreditava existir. Começou relacionamentos acreditando que a primeira atração podia crescer, evoluir, ganhar dimensões únicas e incomensuráveis (adoro essa palavra).

Com algumas viveu momentos inesquecíveis. Com uma descobriu a alegria de um sorriso, com outra a tranquilidade do carinho, com outra ainda aprendeu sobre a serenidade e sobre as escolhas. Estava e sentia-se pronto para entregar seu amor, mas não soube fazê-lo. E, Mesmo frente ao sorriso, à tranquilidade e à serenidade o menino não conseguiu viver um amor definitivo.

Seu luto pelo fracasso das relações era só seu, não precisava e nem deveria ser compartilhado. Era ele quem precisava entender suas próprias razões. Era ele quem precisava digerir o tanto que abria mão por não ter chegado lá. Lá aonde? Perguntava-se às vezes.

Chegou a temer que voltasse a pensar na menina que despertou o tal amor imenso como única solução possível para o seu tanto amar. Logo entendeu que não era isso. Chegou a temer que o tal amor infantil tivesse voltado a lhe incomodar o sono, mas logo percebeu que não havia nada de infantil na sua busca. Chegou a pensar em desistir da busca ideal e em contentar-se com menos do que o máximo e logo percebeu que isso não era seu.


Escolheu seguir. Escolheu escrever seus sentimentos com a mesma certeza incerta que o trouxera até ali. E seguiu.


quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Tipo de Gente


- Não aguento esse tipo de gente!

Se tem uma coisa que o menino nunca entendeu foi a expressão “tipo de gente”. O que será que isso quer dizer, pensava. Sua mãe mesmo, durante muito tempo se referiu a algumas pessoas com a expressão. Mandava ele se afastar daquele “tipo de gente”, dizia que esse “tipo de gente” não vale nada e por aí vai. Ele apenas ouvia e começava imediatamente a imaginar quantos tipos de gente existem.

Será que é como sangue? Gente tipo O positivo? Tipo A negativo? AB positivo? Qual seria, exatamente, a diferença entre um e outro?

E o menino foi crescendo e logo aprendeu que era melhor conhecer todo “tipo de gente” e formar sua própria opinião sobre o tema. Ainda menino, conheceu um tipo de gente que adorava pegar no pé dele. Gente que frequentava o mesmo ônibus escolar e que gostava de provocar até o limite máximo da sua angústia infantil. O menino sofria. Naquele tempo isso não se chamava bullying, chamava-se infância. E o menino foi vítima da maldade típica da infância durante o tempo necessário para aprender a se defender.

Mais tarde, no colégio de padres em que estudou, conheceu outro tipo de gente. Gente mais amiga, mais próxima, mais parecida com ele. Tinha gente padre também, na maior parte: gente boa. Tinha gente professor, uns que ensinaram muito outros que não vão aprender nunca. Tinha de tudo. O colégio era uma miniatura do mundo que encontraria depois. Foi lá que ele teve que aprender a lidar com gente. Foi lá que ele teve as maiores alegrias e as maiores tristezas da sua adolescência. Foi lá que ele começou a descobrir que tipo de gente ele era.

A faculdade veio junto com seu primeiro emprego. Ele estava decidido a ser o tipo de gente que faz a diferença. Por isso se esforçava mais, se entregava mais, tinha mais vontade de fazer bem feito do que as outras gentes. Logo no início do seu estágio ele avisou que queria realmente trabalhar, ante os olhares incrédulos dos profissionais já cansados dos filhinhos de papai, que buscavam o estágio como matéria obrigatória da faculdade. Deram a ele algumas tarefas, depois outras e depois mais algumas. E ele foi dando conta do que era pedido, e com isso ganhava espaço e respeito. Logo, ele se tornava o tipo de gente que valia a pena contratar. Era o que ele queria.

Na carreira encontrou gente de todo tipo. Ainda jovem e decidido a ser o melhor que conseguisse, ele encontrou gente que não gostava dessa ideia. Gente que sentia por ele todo tipo de sentimento inexplicável. Quem se destacava levantava inveja, levantava inimizade, levantava poeira mesmo sem querer. E com ele não foi diferente. Por conta desse tipo de gente, o menino não teve vida fácil. Teve altos. Teve baixos. Mas não teve vida fácil. Seguiu, simplesmente por não ser do tipo de gente que desiste.

Enquanto isso, seu coração mostrava-se pronto para procurar o tipo de gente ideal. Gente que o fizesse sentir orgulho do tipo de gente que ele era. Conheceu as mulheres mais interessantes do mundo. Apaixonou-se diversas vezes. Entregou-se de corpo e de alma para algumas pessoas e seguiu acertando e errando, por entre gente de todo tipo.

Certa vez encontrou uma menina que o amou menos do que ele a amava e isso doeu. De outra vez encontrou uma que o amou mais do que ele o amava e isso também não foi bom. Depois encontrou meninas dispostas a tentar e tentou. Encontrou também as que queriam brincar e brincou. Muitas vezes ele sorriu, como sorriem os meninos. Em algumas ele fugiu, com medo, como fogem os meninos. Em outras ele chorou, como choram os meninos. Mas ele nunca parou, como não param os meninos.

Talvez por tanto errar o menino decidiu buscar o tipo de gente que lhe amasse sobre todas as coisas. Ser amado era para ele mais importante do que amar. E, com isso aprendeu a seduzir, a cortejar, a estimular sonhos e desejos, a criar fantasias, a preparar cenários mágicos e inesquecíveis. Ele precisava ser eterno para todas as pessoas que passassem na sua vida. Menos, era nada.

O problema é que quando ele chegava ao ponto mais alto possível, lá onde o carrinho da montanha russa para de subir e cria um frio súbito no estômago antes de ganhar a velocidade e as curvas, ele fugia correndo. Havia, a partir daquele momento, a chance de amar e amar não era pouco. Amar pressupunha um talento inato, uma capacidade quase santa, um desprendimento total do qual ele tinha muito medo. Percebeu assim que ele era do tipo de gente que tem medo de amar.

E, ao perceber-se covarde, olhou para trás para ver o que tinha feito. Entre todas as gentes que passaram por sua vida pensou em uma menina especial, um tipo de gente que ele só havia visto uma vez. Chorou de saudades, lembrou-se com carinho de tudo o que não viveu. E seguiu.



quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Boa Praça


Para não ficar sem postar nada... resolvi trazer para esse blog um texto sobre a amizade que escrevi para a minha mais querida amiga.


(com carinho para Socorro Machado)

Um dia o poeta estava acordando e tomando a primeira das três canecas de café que o mantém vivo pelo resto do dia. Era cedo. O sol ainda não havia se exibido por completo e o poeta já se punha a pensar entre um e outro gole.

Seu primeiro impulso foi o mesmo de todos os dias. Conferiu que estava vivo e agradeceu aos céus por mais um dia. Todas as manhãs ele faz o mesmo, pensa em como é bom ter mais um dia para viver e promete a si mesmo que vai aproveitar aquele dia como se fosse o último, para em seguida fazer planos e tentar descobrir como esse dia comum pode se transformar em um dia especial. Nem sempre é fácil, mas com o tempo fica bem mais tranquilo perceber que são as pequenas, e não as grandes, coisas que fazem a diferença entre um dia normal e um dia especial.

Logo depois, o poeta pensou com carinho na sua melhor amiga. O poeta tem a sorte de ter uma amiga especial de verdade. Seus generosos sorrisos e sua alegria transbordante nem de perto mostram o tanto que existe dentro dela. Desde o próprio nome até qualquer uma de suas atitudes mais simples mostram que ela está sempre pronta a socorrer seus amigos.

E foi assim que o poeta lembrou-se de uma história que ele leu em algum lugar ou que ficou guardada na sua memória de poeta. Dizia assim...

Duas crianças brincavam em uma praça. Naquele tempo as praças tinham um cheiro especial que só quem brincou nelas é capaz de lembrar. A euforia de estarem lá era imensa e a pressa de aproveitar todos os brinquedos antes que alguém lhes dissesse que o tempo havia acabado era ainda maior.

Subiram logo no trepa-trepa para se mostrarem capazes de conquistar o topo e para que pudessem ver a praça do alto. Era como um ritual para tomar posse do lugar que lhes pertencia por direito infantil. A praça é das crianças e do cume de um trepa-trepa isso é bem mais evidente. É de lá que elas percebem o movimento dos adultos indiferentes a tanta diversão e tantos sorrisos. Mas nem por isso a diversão acaba ou os sorrisos cessam. É de lá que eles descobrem que os dias são mais especiais do que parecem à primeira vista.

- Vamos para a gangorra?
- Vamos!!! O último a chegar é mulher do padre!

E descem correndo com uma habilidade de equilibristas de circo e correm mais ainda pelas areias com cheiro de infância até o próximo brinquedo.

Na gangorra o sobe e desce democrático faz de ambos cúmplices. Quando um sobe o outro desce, quando um desce o outro sobe. Um equilíbrio perfeito que só é possível nas gangorras da infância. Em um momento ele segura a gangorra embaixo fazendo com que sua amiga fique "presa" no alto e ambos riem alto. Ela não se entristece nem se sente presa. Muito pelo contrário, vibra com a sensação de estar no topo do mundo e ele diz a ela que se depender dele ela sempre vai estar no alto. E a cumplicidade aumenta e a gangorra volta a mover-se para o alto e para baixo.

- Tem dois balanços livres. Vamos para lá?
- Vamos!!!!

E, com cuidado, ele a ajuda descer sem se machucar e a pressa anterior dá lugar a uma atenção necessária entre amigos. Quando em segurança, os dois correm de mãos dadas, como só as crianças correm, até os balanços que escolhem pela cor. Ele no azul, ela no vermelho.

Eu consigo ir mais alto do que você, ele avisa. Então me ensina, ela pede. E ele, que estava pronto para uma disputa, dispensa a vontade de competir pela necessidade de compartilhar seu conhecimento. E, com paciência, mostra que as pernas dão o impulso e que o tempo de jogá-las para frente e para trás é o que faz o impulso ainda maior e o balanço subir ainda mais. Ela aprende feliz e os dois aproveitam cada momento no balanço.

- Gosto quando ele está bem alto, diz ela.
- Eu também, mas se ele não descer, nunca subirá!

E os dois retomam um silêncio de palavras entre gargalhadas infantis. Ela pensa: ele tem razão. Se não descer, não sobe. Ele pensa: ela tem razão. O alto é melhor.

Um novo cheiro toma conta da cena e se mistura com o delicioso cheiro de praça fazendo com que os dois tenham a mesma ideia no mesmo momento.

- Pipoca!!!!!!!

Compram juntos um saco grande de pipoca salgada e dividem com pressa, como se toda a pipoca do mundo estivesse naquele saco.

- O pai de uma amiga diz que você só conhece as pessoas quando divide e come junto um saco de sal.
- Será que ele está falando de pipoca???
- Não sei. Mas pra mim faz sentido.

E sorriem pensando na expressão marcada do saco de sal, seguros de que se conhecem e de que passarão toda a vida se conhecendo ainda mais e melhor.

- Crianças! Tá na hora de ir embora!

- Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh - respondem os dois ao mesmo tempo enquanto olham os brinquedos e se despedem da praça com a certeza de que sempre voltarão.