sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Outra Viagem


Vai começar outra viagem. O menino adora os momentos em que se desliga de tudo. Não precisa fazer o dever de casa. Não vai ter prova. Não terá que estudar para a chamada oral. Tempo e hora de relaxar. O menino vai para os braços serenos de Yemanjá. De praia em praia visitando águas curiosamente diferentes, vai ver peixes de tamanhos e formas distintas, pisar na areia fofa e na areia dura com o mesmo prazer. Vai furar ondas. Vai prender o fôlego para ir mais fundo de olhos abertos em busca do desconhecido. Tempo de fantasia, hora de sorrir feito criança.

Pegar a estrada é das melhores coisas da vida. A única coisa que ele sabe é que vai chegar. Sabe que os dias podem ser generosos e dar a ele dias de sol e noites de lua. Sabe que os dias e noites podem ser de chuva e de vento. E sabe que, seja como for, ele vai levar o sorriso no rosto. O menino acredita no destino e acha importante dar ao destino, vez por outra, uma chance dele se manifestar. É simples, basta não querer comandar tudo e deixar as coisas acontecerem da maneira que acontecem. É como dirigir sem as mãos no volante.

Mas ele já sabe seu roteiro. Vai pela terra, beirando o mar. Pega a estrada que liga a cidade que ama a cidade onde seu pai nasceu. A primeira parada é na Vila dos Reis Magos que tem N. Sra. da Conceição como padroeira e uma grande ilha bem de fronte. Lá, vai passear de barco, procurar cachoeiras, mergulhar em águas limpa e buscar a companhia das tartarugas que nadam rápido e que fazem com que ele sinta-se ainda mais menino. De lá para o último destino da estrada real, onde as pedras fazem o caminho das águas pelas ruas em que se caminha com cuidado. Lá onde o Brasil é mais colônia, mais Brasil. Por perto matas e praias lindas vão receber sua visita. Depois a cidade de nome indígena, de litoral grande e belo, abusadamente belo. Lá, visitas ao mar, à praia e aos restaurantes de pescadores que sabem consertar redes de pesca. Vai matar saudades dos tempos idos em que frequentava a região com amigos e primos de risadas generosas e histórias muitas. A última parada antes do destino final é a bela ilha, um lugar que mistura várias cidades em uma só. Paraíso dos borrachudos e da exuberância da natureza. Balsa pra lá, balsa pra cá e no final segue para ver sua mãe, razão da viagem e porto seguro de qualquer viagem.

O menino não vai só. Vai levar a menina que ama. Vai ouvindo música alta. Vai devagar porque é no caminho que está a felicidade. Vai atento às curvas e a tudo o que acontece na beira da estrada. Nessa viagem, a estrada do sonho cruza a estrada real. E ele acha graça e segue seu caminho feliz.



quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Dias de Chuva

  
O menino nunca gostou de dias de chuva. Parecia para ele que o mundo andava de mau-humor. Parecia que o céu estava triste, que o sol tinha se aborrecido com alguma coisa e sumido por um tempo. Ele ficava triste também, não sabia como achar ânimo para aproveitar os dias em que o sol não aparecia.

Foi em um desses dias que o menino abriu seus olhos cedo demais, por volta das cinco e pouco da manhã. Acordou feliz, como sempre acorda, e abriu a janela para dar bom dia ao dia. Nuvens escuras e carregadas de gotas d’água estavam por ali e ele encolheu o sorriso.

Resolveu voltar a dormir, e sonhou...

Havia um campo de mato verde por onde o menino cavalgava em um cavalo lindo. Estava sozinho. Afagava o cavalo, seu velho amigo, e o deixava, vez por outra, escolher o caminho. Levantava a mão e comandava com sons curtos o galope. Sentia o vento no rosto. Ouvia apenas o barulho da sela no lombo do cavalo e a respiração ofegante e contente. No céu, um lindo azul pontuado com nuvens brancas emoldurava a paisagem. Que dia lindo, pensava o menino em seu cavalo.

De repente, um trovão...

O telefone toca e uma amiga pede que ele chame uma ambulância para o filho que está tendo uma crise convulsiva. Ele para de escrever e faz o que foi pedido. O telefone não completa a ligação, o maldito som de ocupado ressoa várias vezes nas muitas tentativas que fez. Ele liga para o médico, amigo, que ocupa um cargo importante no hospital em que o filho da amiga precisa chegar e o telefone também não responde. A amiga liga de novo... O filho voltou a si e ela vai pegar um táxi para o hospital. Nem por isso ele fica mais tranquilo, mas só o que pode fazer é rezar.

E o menino reza e pede uma oração para quem for de oração. Pensa no filho, pensa na mãe e reza: Ave Maria, cheia de graça. O Senhor é convosco. Bendita sois vós entre as mulheres. Bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus. Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora de nossa morte. Amém.


E acordado, lembra-se o quanto detesta dias de chuva.


segunda-feira, 16 de setembro de 2013

O que você fez da sua vida?


O menino se perguntava, volta e meia ou meia volta, o que ele estava fazendo da sua vida. Claro que a vida já havia aprontado com ele como apronta com todo mundo, mas a sua questão era saber se ele era mesmo o dono da sua vida e se as suas escolhas eram mesmo as melhores escolhas que ele podia tomar.

É muita responsabilidade. Não dá pra errar, ou pelo menos: não dá pra errar muito. Desde criança as escolhas tem que ser feitas e pensadas, todos os dias. Vou comer bem? Vou brincar? Vou ligar para os meus avós e dar um beijo? Vou ser educado? Vou respeitar os mais velhos? Vou fazer birra? Tudo tem consequências. Se não comer bem pode ficar doente, se não brincar, pode virar um chato, se não ligar para os avós pode perder uma chance única, se não for educado pode ser excluído dos grupos e por aí vai. Tudo tem consequências e elas são, quase sempre, imprevisíveis.

O menino sempre acreditou que a vida é uma longa estrada com inúmeras bifurcações. A todo o momento há escolhas para serem feitas. Não dá pra fugir disso. Não dá pra deixar a vida levar, porque ela não leva quem não se mexe, quem não escolhe. São as escolhas que vão levar cada um ao seu destino. E o destino não é a felicidade, a felicidade é o caminho.

Passam os anos e o menino se vê obrigado a olhar para trás. Volta e meia ele precisa parar, sentar na beira do tal caminho e olhar para trás. Ficar ali, pensando sobre como foi que ele chegou onde está. Em que momento ele preferiu seguir pela direita. Quando foi mesmo que escolheu sua profissão. Como é sua relação com a família e amigos. Que critérios ele usou para amar e para ser amado. O que é que ele ainda quer construir. Do que foi que ele já desistiu. E assim por diante.

Questões nunca faltam. Talvez tenha faltado tempo para ir mais fundo nelas. Às vezes, sentado ali, viu alguma coisa passando e escolheu seguir ao invés de pensar, e foi. Mas as questões sempre estiveram por perto.

Um dia, um amigo lhe disse que ele não percebia que existia gente ruim por aí. Ele se assustou: - Gente ruim como? Ruim de nascença? Não acredito mesmo que existam! Mas o amigo insistiu e avisou: - Existem sim. Você não pode tomar os outros pela maneira que você é. Na vida você vai encontrar gente que simplesmente não vale a pena, porque são rasas, pequenas ou porque são más mesmo. Escolheram viver a vida procurando uma maneira de terem mais coisas e passam por cima, uns dos outros, para conseguir o que querem.

- Mas... Para que isso?

E lá vinha mais uma questão para ele parar e pensar. Ele não era santo, mas não acreditava na maldade como característica das pessoas. Pensava se por isso tinha sofrido onde achou que não sofreria e se era essa a razão de algumas das suas maiores frustrações. Ele simplesmente não entendia e também não havia nada o que ele pudesse fazer. Seguiria seu caminho do jeito que é e que sempre foi, parando e pensando que deve estar sempre pronto para responder a pergunta que todo mundo faz a si mesmo em algum momento: - O que eu fiz da minha vida?



sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Nada Não


O menino era dado aos esportes. Gostava de participar das equipes de colégio e se esforçava para ser bom no que ele estivesse jogando. Infelizmente, futebol nunca foi sua praia. Ele tentava, mas ficava sempre de fora das seleções da turma que se dividia entre os “cobras” e os “lagartos”. Os cobras eram os bons e os lagartos não. Simples assim. Ele seguia firme na sua perebice infantil e aos poucos se tornava uma espécie de reserva dos lagartos, ou seja: só jogava se não houvesse opção.

Por outro lado, tinha muita habilidade no basquete e no handebol. Nesses esportes estava entre os melhores, participava com vontade. Chegou a ter sua própria bola de basquete e praticava bola ao cesto por horas a fio. No handebol era goleiro, a pior posição do time, mas  onde ele surpreendia com defesas incríveis para o delírio dele mesmo e dos colegas de classe.

Fora da escola, seus esportes passaram pelo judô e pela natação. O judô o ensinou a cair e ele é grato até hoje pelo milhão de tombos que tomou enfrentando seus adversários. Mas foi só. Não foi além de uma simpática faixa azul. Já a natação era outra história, quase mágica para o menino. Ele tinha aulas em um velho clube carioca em que havia duas piscinas, uma normal e outra olímpica com direito à plataforma de saltos e tudo mais.

A rotina era chegar ao clube já de sunga, vestir uma ridícula touca de pano, pegar uma mini prancha e ir para o aquecimento. Essa era a parte chata. Alguns dos nomes dos exercícios que ele fazia para se aquecer, antes da piscina, ele jamais esqueceu. “Jairzinho” e “polichinelo” são duas palavras que ele guardou com rancor para o resto da vida. Passados os quinze minutos malditos do aquecimento inicial era hora do mergulho.

Quando a ordem de cair na piscina era dada, o menino se transformava. Acreditava que estava entrando no seu próprio reino das águas claras. Respirava fundo, jogava a prancha na frente e mergulhava de cabeça buscando o fundo com as mãos para só então voltar à tona pra respirar. Aquela água lavava o corpo e a alma. Era o melhor momento do dia, ainda que passageiro e seguido dos berros do técnico que começava a dar ordens para todos: “batendo as pernas na borda”, “alternando a respiração”, “agora com a prancha, de um lado para o outro”, “agora de costas”, “agora a virada” e por aí vai... Não faltavam ordens nem imaginação ao técnico, dono de um insuportável apito que apontava os erros de todos impiedosamente.

Depois de mais uns vinte minutos nessa chatice, era hora de nadar de verdade. Começavam as disputas em vários estilos. Seu preferido era o Crawl, acho que pelo nome que impressionava e pela simplicidade das braçadas e da respiração. Nesse estilo ele era sempre um dos primeiros a chegar. O nado de peito também era fácil para ele, seguido de perto pelo nado de costas. Sua grande dificuldade era o tal do nado borboleta. Primeiro porque borboleta não nada, depois porque coordenar braços, pernas e respiração nesse estilo era um sufoco danado.

Um dia, o técnico avisou que haveria uma competição carioca de natação e que ele estava convocado para nadar na sua categoria contra os meninos de outros clubes. Ele ia nadar seu nado preferido e tinha que representar o clube com garra. Nossa, ele adorava a ideia de competir, ainda mais em algo que ele gostava tanto. Nas duas semanas que separaram o aviso da competição ele treinou dobrado. Chegava mais cedo e saía mais tarde, não reclamava do aquecimento e nem da prancha. Dedicava-se com um espírito guerreiro que nem ele reconhecia. Estava decidido a ganhar.

Na hora da prova o nervosismo era grande. O menino estava lá, na piscina olímpica, na sua marca, pronto para cair na água e vencer cada braçada com toda a sua disposição. O técnico mandou que assumissem suas posições. Ele havia dispensado os óculos de natação. Estava focado, esperando o momento certo que veio com o apito da partida. Ele não pensou em mais nada. Mergulhou tomando impulso para sair na frente, mas logo se esqueceu dos demais. Tudo o que pensava era em dar o seu melhor e esse melhor passava pelo prazer de nadar de estar dentro d’água, de se esforçar.

As braçadas se repetiram. A respiração falhava porque ele preferia segurar o fôlego ao invés de perder tempo com isso. Ouvia o barulho da torcida de fora. Bateu na borda da piscina e conseguiu sua melhor virada. Teve tempo de notar que estava bem na competição. Animou-se a nadar ainda mais forte e no meio da piscina viu o filme da sua vida passando por sua cabeça. Lembrou-se das primeiras aulas, dos primeiros mergulhos, do avô que o ensinara a nadar, do mar da praia da sua infância, do técnico, dos amigos do clube e da vontade de mergulhar. Nadava e sorria. E seguiu nadando até que o lugar no pódio não fosse mais importante.



quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Folha em Branco


Tão desafiadora que nem sei bem como começar. Olho para ela e ela olha para mim de volta, com total indiferença. Paro e penso que talvez versos sejam o ideal, penso mais um pouco e a prosa chega mais perto e com mais vontade. A folha em branco é como uma mulher que sabe o que quer e que não aceita menos. Altiva, imaculada e decidida e fazer do seu destino o pouso de letras e palavras que pelo menos façam sentido. E eu, meio perdido, olho de frente e de lado e não encontro o sentido certo das linhas que quero traçar.

Por que é mesmo que eu escrevo? Ah sim, para dar forma aos pensamentos que não encontram mais espaço para ficar dentro de mim. É pela simples necessidade de me expressar. É porque eu acredito que não faz sentido guardar só pra mim as coisas que penso e também porque acho que não sou o único a pensar o que eu penso.

Mas, como surge a ideia? Eu acredito sincera e honestamente que “ideia” é uma energia que circula livremente pelo ar, à altura das nossas mentes. Ninguém é dono de nenhuma ideia, somos apenas os veículos capazes de “dar terra” a essa energia. Somos condutores dessa energia e a modelamos de acordo com a nossa capacidade. Algumas ideias que passam por mim, por exemplo, deveriam ser quadros, mas eu não sei pintar então escrevo. Outras são músicas, claro que são músicas, mas de que isso adianta se eu não sei tocar nenhum instrumento e nem compor letras? Ideias não surgem, passam.

E na hora de colocar as tais ideias no papel? Como é que se faz? Acho esse o momento mais fácil e simples. Basta sentar na frente de um computador e deixar os dedos baterem nas teclas. Se preferir a velha e boa caneta ou o velho e bom lápis, sem problemas. Recomendo apenas que você não se meta no caminho da ideia. Elas são muito intolerantes e não querem saber da sua opinião. Querem passar, chegar logo ao ponto final percorrendo o caminho necessário para existirem. Tenha, portanto, certeza de que você não interferiu demais. Dê uma relida em tudo. Conserte as vírgulas, os acentos, os parágrafos, mas não se meta nos caminhos da ideia.

Então é assim? Pegou a ideia, conduziu seu caminho pela folha e pronto! Acabou?

Não. Definitivamente não. A ideia é uma energia tão especial e bonita quanto um fenômeno da natureza. Mas de que adianta um arco-íris no céu se você não está vendo, se ele não emociona você? Nada! É assim com a ideia também. É necessário achar e oferecer os melhores caminhos para que a ideia chegue às pessoas certas. As que vão entender o que você está falando e não vão achar que você é doido nem ter pena de você. É pra isso que se escreve, é para emocionar, fazer pensar, fazer sorrir, fazer chorar.

Ideias são atalhos que criamos para os sentimentos das pessoas. Todo mundo precisa delas porque normalmente estão tão preocupadas com a sobrevivência que não se dão conta de que estão aqui para viver e não sobreviver. É papel das ideias mostrar isso para o maior número de pessoas e da forma que elas forem capazes de perceber isso. Uma mesma ideia chega de várias maneiras às pessoas. Cada um entende a ideia como ele mesmo é. E ninguém é igual a ninguém. Lembra-se do arco-íris? Então, é igualzinho. Você vai ver o arco-íris da sua maneira porque isso depende de onde você está e dos ângulos da chuva, dos raios de sol e da sua visão. Um mesmo arco-íris são muitos.


Mas então porque você chamou esse texto de “Folha em branco”? Porque era assim que ela estava antes dessa ideia passar por aqui.


quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Esses Moços...

O menino gostava de observar as pessoas. Muitas e muitas vezes, ficava de longe olhando e tentando perceber melhor o que um ou outro estavam fazendo. Prestava atenção nas pessoas comuns com quem cruzava na rua quase todos os dias, prestava atenção também nas pessoas mais próximas e ficava sempre atento ao que diziam, ao que faziam, ao que mostravam uns para os outros. Ele acreditava que conhecendo melhor os outros entenderia a ele mesmo melhor.

Uma vez parou para olhar um casal bem jovem. Lembrou-se dos tempos em que tinha aquela idade. Eram apaixonados, um pelo outro. Tratavam-se com todo o carinho do mundo. Quando não estavam colados, estavam procurando o outro. Tinham, é claro, os momentos de provocação em que um implicava com as pequenas tolices do outro. Tudo desculpa para se beijarem com amor, pensava o menino.

Era um casal próximo e por isso o menino convivia com eles. Era um casal bonito, do tipo que planeja o resto da vida junto. O menino lembrou-se das tantas vezes em que ele mesmo acreditou que era pra sempre, sem saber que o pra sempre, sempre acaba. Mas seguiu observando, calado. Percebeu que o casal tinha um mundo só deles. Um mundo criado pelas verdades e desejos dos dois. Poderiam, se quisessem, ter criado seu próprio idioma. Poderiam ter estabelecido seus próprios padrões de comportamento. Poderiam ter feito qualquer coisa, porque o mundo era só deles, ao menos aquele mundo.

Viajavam juntos, gostavam dos mesmos lugares, das mesmas pessoas, das mesmas festas. Um tentava respeitar o espaço do outro, tentavam desgrudar às vezes apenas para ver o outro voar e voltar. Tinham todos os sonhos do mundo e muitos mais para construir e viver. Era lindo ver o casal que se encaixava com a sabedoria e as verdades absolutas da juventude.

Um dia o tal casal rompeu. Um disse me disse que disse o que disse foi o culpado.

A confiança deles, um no outro, não era tão forte e nem tão fácil quanto eles julgavam. O menino, novamente observou. Viu de perto a tristeza da menina porque ela era mais próxima. Pensou na tristeza do menino porque se lembrou das tantas vezes em que sentiu o mesmo. O mundo construído pelos dois ia sendo abandonado aos poucos. Ele saiu primeiro, mas poderia ter sido ela. Ela ficou, cuidando de tudo o que sonharam juntos, sem saber quanto tempo ficaria sozinha por ali. E os dois se entristeceram de formas diferentes.

Ele tentou transformar a tristeza em raiva. Um dos sentimentos mais próximos do amor que existe, pensou o menino. Sentia-se traído e roubado dos sentimentos que escolheu. Sentia-se tão mal que nem imaginava que podia estar errado. A mágoa criada de fora para dentro tinha encontrado um jeito de entrar e doía fundo. Ele, também menino, precisava do seu tempo e espaço para se refazer, se reinventar, se encontrar. Acreditava que se criasse um outro mundo e se fizesse isso rápido, sofreria menos. Olhava para o amor com um tanto de rancor. Se pudesse conversar com o amor diria que aquilo não era justo com ele, tomaria satisfações, juraria vingança e todas as outras tolices que falamos e fazemos quando estamos tristes de amor.

Ela ainda ficou lá, no mundo deles. Organizou os armários, abriu as janelas, colocou as lembranças nos lugares certos e escolheu sofrer quieta, acreditando que um mundo tão bonito não poderia ser abandonado daquela forma. E por isso limpava, e arrumava, e cuidava. Ela sofria sua falta e não queria aprender a viver sem ele. Esperava sua volta. Sentia-se privada dos seus sentidos. Seguia olhando, mas não enxergava, seguia falando, mas não tinha resposta, seguia ouvindo, mas não escutava, e sentia a falta do cheiro e do sabor do seu menino. Sabia que não poderia ficar sozinha naquele mundo que só existia porque existiam os dois juntos, mas ainda teimava em não sair.

O menino olhava aquilo tudo com a agonia de quem não suporta ver o amor desperdiçado. Mas se é desperdiçado, não deve ser amor! Pensava. Lembrava-se de uma música antiga que falava sobre os jovens. Dizia que se eles soubessem o que se sabe não amavam, não sofriam, não passavam aquilo que o autor da música já havia passado. E pensava também que se ele pudesse, diria aos dois que a vida é maior que um momento, que uma mágoa, que uma briga. Diria que amor é a única coisa importante que existe. Diria que a vida é feita de escolhas. Que é como uma estrada de mão única, em que sempre há dois caminhos e que não é possível voltar atrás. Diria que o mundo dos dois é bonito demais para ser abandonado e avisaria que eles até poderiam criar novos mundos, cada um do seu jeito, cada um com quem quisessem, mas que aquele mundo era único, era vivo, era cheio de vida pra ser vivida e de amor pra ser amado.


Mas como o menino não podia dizer, escrevia.


terça-feira, 10 de setembro de 2013

Sonhando com o futuro


As palavras não vão sair. Elas estão presas. Por alguma razão elas não querem falar comigo hoje e eu não tenho nada para escrever. O que será que eu fiz para elas me tratarem assim? Será que andei pensando demais? Será que gastei as palavras nos pensamentos que passeiam sem parar pela minha cabeça? Não sei bem. Sei que acordei morrendo de saudades das palavras e elas não vieram conversar comigo hoje.


Dormi bem sim. Dormi relaxado do jeito que eu mais gosto, na cama que eu mais gosto, com a mulher que eu mais gosto. Dormi feliz o sono de quem se lança na vida como quem se lança nos sonhos. Dormi atento àquele momento em que fecho os olhos e me dou boa noite, e me deixo levar pela magia do sono. O corpo encontra sua posição, não preciso mais mexer, posso ficar parado e me deixar levar da maneira que for. Então a cabeça começa a visitar lugares imaginários ou reais que já passaram na minha vida de alguma forma. Vejo o clube da infância, onde aprendi a nadar. Vejo a fazenda de um tio que frequentei muito no início da adolescência. Vejo campos e campos de flores e de matas. O coração dá uma suspirada, a mente se despe do meu corpo e ganha vida própria e me permite viajar solto no ar.

E aí, o sonho.

Sonhei com o futuro. Vi os dias, meses e anos que virão pela frente. Tudo muito rápido e lá estava eu ao seu lado, de mãos dadas e sorrindo. Você mandava eu me cuidar, fechar a blusa, vestir um sapato. Sorria fácil. Me olhava com carinho e se aninhava nos meus braços dizendo que era feliz. Eu beijava seus cabelos e depois seu rosto e procurava sua boca para um beijo a mais. E você sorria novamente.

Levantamos os olhos e vimos as crianças. Crianças das nossas crianças. Todos sorrindo e brincando. Todos em nossa volta, esperando o jantar, tomando um drink, contando histórias e pedindo nossas opiniões sobre o que acontecia na vida deles. Contavam tudo e contavam com nós dois e com as nossas palavras para saber o que fariam. Eu me lembrava então das que ouvia do meu pai e repetia, adequando o texto para dar caminhos aos nossos filhos e netos. Você lembrava-se das que a sua mãe dizia e repetia, dando credito a ela, todos os bons conselhos de uma forma direta, mas com o mesmo carinho de mãe, sua herança predileta.

E eu olhava para você e perguntava se eu tinha conseguido. Você me olhava também e dizia: - Conseguido o quê? E eu respondia: - Conseguido ser o boa praça que uma vez eu disse que queria ser. E você deixava escorrer uma lágrima e me beijava dizendo que sim.

Eu ainda me lembrava do dia em que você me disse que queria que seus filhos tivessem meus valores e me perguntava se tinha lhe dito a mesma coisa sobre a minha filha, e também se havia lhe dito que eu também queria ter seus valores e do seu pai e da sua mãe para mim.

...

E acordei abraçado em você, acarinhando seu rosto, beijando seu cabelo e sua face e sua boca e dizendo que ia me levantar para fazer café e que te amo.

E as palavras acordaram também.


segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Depois da Montanha-russa



Tudo começou como começam as histórias imprevisíveis, improváveis, imprescindíveis. Uma amiga em comum convidou os dois para se conhecerem. Um chopp. Um bate-papo. Um dia qualquer e os dois, desconfiados, aceitaram.

O menino chegou antes e tomou seu primeiro chopp sozinho. Elas chegaram depois e sentaram e começaram a conversar uma conversa fácil. Havia muito em comum entre os dois. Havia um bem querer natural, inexplicável que crescia a cada chopp. A amiga vibrava com os dois se conhecendo e se entendendo. É que os dois haviam dito para a mesma amiga que estavam prontos para viver um novo amor. Era coincidência demais. E ela quis apresenta-los.

Ele disse a ela que não sabia mentir. Ela disse que isso muito a interessava. Eles riram, os chopps foram ficando pelo caminho, uma outra amiga apareceu e as amigas conversaram enquanto os dois fugiam para uma viagem só dos dois. Parecia mesmo que o mundo em volta não existia. A ânsia de saber a razão da demora do outro era grande. Contavam sobre a vida, a família, filhos, experiências e tudo mais para que pudessem viver a intimidade que havia nascido no primeiro olhar. “Como pode ser assim?” pensavam os dois. Ela ria, ele ria.

Encontros assim precisam ser guardados. Talvez por isso olhassem tão fundo, um nos olhos do outro. Aquele encontro parecia um caminho, que levou os dois, da conversa para o primeiro beijo em poucas horas. Beijo com gosto de montanha-russa. Beijo que fez os dois entenderem que o carrinho já tinha subido até o ponto mais alto e que agora bastava levantar as mãos e sentir o frio na barriga, o medo infantil, as curvas, o vento no rosto e tudo mais que só os carrinhos de montanha-russa são capazes de fazer sentir.

“E mesmo com tudo diferente, veio vindo de repente uma vontade de se ver.” E se viram muitas vezes depois. Ele disse a ela: “- Vem comigo!” e ela ia. Eles viveram momentos que não achavam que poderiam mais viver. Acordavam juntos, passeavam juntos, riam juntos, viajavam juntos, dormiam e sonhavam juntos. E a montanha-russa parecia não ter fim. Os dois só se preocupavam com o outro, com a felicidade do outro. E o carrinho corria fácil e rápido, como correm os carrinhos de qualquer montanha-russa.

Quando o carrinho parou e eles tiveram que descer, descobriram que tinham um imenso parque de diversões para conhecer. Olharam um para o outro apenas para ter certeza. Ele queria a certeza de que ela vinha mesmo com ele. Ela queria ter certeza de que estava acordada. E caminharam pelo parque de mãos dadas. Comeram algodão doce, andaram no carrinho bate-bate, rodaram no carrossel, caminharam, sorriram e permaneceram de mãos dadas.

Resolveram, em algum momento, entrar na casa mal-assombrada. E tiveram medo juntos, apesar das mãos dadas. Havia surpresas e sustos por todos os lados e não era isso o que eles estavam procurando, mas já estavam lá. De repente, um susto maior e ela largou a mão do menino, que no escuro procurou por ela. O susto passou e as mãos se encontraram de novo, mas ainda havia muito a andar naquela casa. Seguiram em frente e logo outro susto separou a mão dos dois mais uma vez. Ele nervoso a procurou novamente e novamente a encontrou. E já quase no final um terceiro susto os separou de novo. Dessa vez as mãos se perderam e eles seguiram em frente, cada um do seu jeito, até a saída. Cada um saiu por uma porta, perdidos um do outro. O menino seguiu por um lado. A menina seguiu por outro lado. Não se viam. Não se falavam. Os dois sentiam a falta da mão e do carinho um do outro. Mas seguiram.

Depois de andar pelo parque, o menino decidiu entrar na fila da roda gigante, sem perceber que ela também estava lá. Eram duas filas. Os casais podiam entrar juntos. Quem estivesse sozinho teria que compartilhar o espaço. E quis o destino que eles entrassem juntos. A roda estava embaixo, parecia ter parado por alguns instantes, antes de seguir seu rumo até o alto. Os dois se olharam, choraram, se acarinharam e deram as mãos novamente enquanto a roda subia devagar até bem perto da lua.

E de mãos dadas novamente, os dois pensaram: ainda há muito parque para visitar.




sexta-feira, 6 de setembro de 2013

As Boas Coisas da Vida


O menino ouvia seu pai repetir que as melhores coisas da vida são as pequenas coisas. No início ele mal entendia o que isso queria dizer. Ouvia o pai, sábio, e descobria que ele ainda não sabia bem o que eram coisas pequenas e coisas grandes. Para o menino, as melhores coisas da vida simplesmente eram.

Com o tempo, com os hábitos da infância, ele descobriu o prazer de andar de mãos dadas com o pai. Andavam sempre com destino certo e sempre de mãos dadas. O pai tinha um passo ligeiro e ele aprendeu a acompanha-lo na proporção de um passo e meio para cada passo largo do pai. Não pensava no cansaço. Pensava na mão forte e firme que o segurava e que ele não queria largar. Uma coisa à toa, talvez, mas muito longe de ser uma coisa pequena.

Quando doente, recebia todos os carinhos do pai. Primeiro uma ligação que disfarçava a preocupação, depois, em algum momento do dia, uma surpresa. Podia ser uma sacola entregue em casa pela banca de jornais e que continha suas revistinhas favoritas, podia ser um livro ou um disco há tempos desejado, podia ser sua comida favorita. O fato é que a surpresa sempre vinha e sempre alegrava o menino que ligava feliz e agradecido pelo gesto do pai que gostava de vê-lo sorrindo. Isso também não era pequeno, ainda que não fosse grande.

O menino aprendia e levava consigo o valor das boas coisas da vida. Foi assim que ele aprendeu, foi isso o que herdou e por várias vezes na vida repetiu.

Menos menino, ele muitas vezes perdeu-se nos próprios pensamentos. Não sabia o que era bom de verdade e o que não era. Sua maior dúvida era separar o grande do pequeno, o importante do menos importante. Permitia-se viver com intensidade todos os momentos da sua vida porque sabia que a vida lhe pertencia e que só ele poderia fazer dela o que ele quisesse.

Nos amores que teve, e não foram poucos, ele percebeu que também havia diferença entre o grande e o pequeno, entre o importante e o menos importante. Tinha sempre a necessidade de oferecer, de proporcionar, de encantar, de seduzir. E nem sempre isso era necessário, mas isso ele não sabia. Aos poucos, ele imaginou que o importante era o que marcava. Gestos grandes, surpresas, exageros, arroubos, fantasias. Tudo o que saísse do medíocre ganhava importância, era relevante. Na sua forma de ver o mundo, esqueceu o conselho do pai, e lutava para ser sempre o inesquecível, o único, o especial. Uma necessidade quase infantil de ser reconhecido, aceito, desejado e separado do resto.

Escolheu a vida de poeta que tudo pode, tudo quer, tudo sonha, tudo existe na intensidade das palavras e dos atos. Queria ser admirado por isso e não se dava conta que vestia uma personagem e que corria o risco de se esquecer do menino que nunca deixou de ser.

Um dia, ouviu de uma menina, por quem ele tinha um dos maiores afetos e carinhos que jamais teve, que ele não precisava mais seduzi-la, que ele não precisava mais surpreender, superar expectativas, entregar sonhos, criar fantasias. Ouviu que ela preferia dar valor as pequenas coisas e que na opinião dela as pequenas coisas são as melhores coisas da vida.

E o menino cresceu.



quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Lápis de Cor



Uma caixa de lápis de cor. Foi o melhor presente que o pai do menino trouxe da última viagem. Deu junto com os chicletes de sempre, o par de tênis, algumas camisetas, muitos chocolates e brinquedos eletrônicos que ele nem imaginava como poderiam funcionar. Mas foi a caixa de lápis de cor que o deixou mais feliz. E o pai explicou que aqueles eram lápis aquarelados. Bastava molhar a ponta para obter um efeito de aquarela nos desenhos do menino, que nem deu bola pra isso. Beijou o pai como se ele pudesse entender o tamanho da sua felicidade e foi correndo – meninos estão sempre correndo – procurar folhas de papel em branco.

Sentou-se na escrivaninha, colocou as folhas de papel a sua frente. Olhou para a caixa e a abriu pela primeira vez revelando todas as cores de uma só vez. Era lindo, pensou ele.

O primeiro desenho foi o mais infantil dos desenhos. Uma casa com porta e janelas, um caminho na frente, morros de mato verde atrás e um lindo sol nascendo entre os montes. Usou o verde para a grama, o vermelho para o teto da casa, o marrom claro para as paredes, o azul escuro para a porta, o claro para o céu e o amarelo para o sol. Desenhava e conversava com o desenho como se ele pudesse ouvi-lo. Desenhou o que queria desenhar e depois resolveu plantar uma macieira no jardim e dar um rosto ao sol. Sorriso largo e óculos escuros. Que beleza de desenho.

Acabou e foi leva-lo de presente para a sua mãe. – Olha mãe, o desenho que eu fiz pra você! E a mãe ria e perguntava: - Pra mim, meu filho? Que lindo! E o menino explicava: - É a minha casa mãe, a casa que eu vou construir pra gente morar junto quando eu for mais velho. Vai ter jardim, gramado, árvore, montanha e muito mais... tem umas coisas que nem couberam aqui, como o meu cachorro e meu cavalo, mas isso eu desenho depois. Beijou sua mãe e voltou para a escrivaninha.

Outro papel. E a imaginação dele corria solta. Pensava no que desenharia desta vez. Pensou no mar e começou a desenhar um barquinho em um leito de águas de todos os azuis. Velas abertas, vento soprando forte e o barquinho navegava seguro no limite da folha. Desenhou um céu com um azul bem clarinho e o sol de óculos escuros brilhando forte, cheio de raios imensos. Sorria e desenhava. E entregou esse novo desenho para o pai, dizendo que era nesse barco que eles iriam viajar o mundo, enfrentar piratas, conhecer as praias mais lindas, mergulhar com os peixes que ele não havia desenhado e passar muito tempo juntos, quando ele fosse mais velho.

O pai sorriu, sonhando que o filho conseguisse seus desejos e que ele tivesse tempo para viver os sonhos junto com ele.

Voltou mais uma vez para o papel e percebeu que havia cores que ele ainda não havia usado. O roxo, o rosa, o laranja, o turquesa e outros que ele nem sabia o nome. Teve uma ideia e começou novamente a desenhar. Desta vez: o maior arco-íris do mundo, com todas as cores do estojo, uma completando a outra e todas fazendo a curva mágica que acabava atrás de uma montanha.

- Esse desenho eu vou guardar pra mim, pensou. É pra não esquecer nunca, nem quando eu ficar mais velho e tiver minha casa e meu barco, que o arco-íris mora dentro da caixa de lápis de cor.



quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Fantasias de Menino


Tem gente que eu acho legal. Gosto de gente que sorri quando anda sozinha na rua. Gosto de gente educada, que dá passagem, que oferece uma bala. Gosto de gente que sabe ouvir e também de gente que sabe falar, na hora certa. Gosto de gente que gosta de bicho, mas acho estranho gente que trata bicho feito gente. Gosto de gente que reza para agradecer. Gosto de gente que fala a verdade, mesmo que não seja a melhor coisa para se ouvir. Tem gente que eu acho bem legal.

...

Tenho amigos músicos e eles me dão músicas amigas. Tenho amigos artistas e eles me dão cores de presente. Tenho amigos cozinheiros e eles me dão a mesa, sabores e risadas. Tenho amigos sonhadores e eles me dão noites e noites da mais pura fantasia.

...

Mas se me perguntaram se eu me acho legal, se gosto de mim mesmo, diria que sim, que gosto de ser quem sou. Se me perguntarem se vale a pena, diria que sim, que sempre vale a pena. Se me chamarem de maluco, dou um grito alto, subo na cadeira e bato palmas e volto rindo à lucidez. E se me perguntarem mais alguma coisa vou me embora porque não tenho paciência para tanta pergunta.

...

Pra onde vai seu coração? Vai pra perto do pensamento!
Mas isso não faz sentido, a menos que faça. Você não acha?
Pra onde vai seu olhar? Vai pra onde ele me levar!
Então fecha os olhos e veja e vá devagar.
Pra onde vão seus passos? Vão correndo te buscar!
Vá descalço e beira o mar, é lá que ela deve estar.
Pra onde vão suas orações? Vão para o céu me abençoar.
Reza forte, reza alto. Agradece e pede e torna a rezar.
Pra onde vão suas memórias? Vão pra folha de papel.
Escreve e chora e escreve e rasga e escreve.
Pra onde vão seus sonhos? Vão pra noite iluminar.
Então dorme meu menino que a lua quer brilhar.
Pra onde vão suas ilusões? Vão para o meu tanto chorar.
Chora manso, chora tudo, chora isso. Tira o choro e volta o riso.
Pra onde vão suas poesias? Vão para o amar.
Fantasia de menino é sempre doce.

Vai com tudo. Vai com Deus.


terça-feira, 3 de setembro de 2013

Beija-flor

(Minha homenagem a D. Sarah Maldonado, um exemplo de mulher que virou beija-flor.)


O menino certa vez subiu a serra para conhecer um lugar novo. Ele foi junto com a menina que queria mostrar a ele seu lugar especial. Era lindo o lugar. Tinha grama, tinha flores, tinha gente, tinha amor. O menino se encantou pela serra da menina. Sentiu-se em casa e feliz. Foi recebido por todos como se fosse um deles e isso o deixou ainda mais feliz, ainda mais menino.

Logo que chegou notou um beija-flor. Era um beija-flor mãe. Percebia-se fácil porque ela não parava um só instante, sempre em busca do melhor para os seus. Ia de um lado para o outro, voava rápido, delicadamente e a todo instante uma novidade. Ora cuidava de suas plantas e flores para que todos vissem a beleza do seu mundo, ora se esforçava para oferecer o melhor que pudesse oferecer apenas para ver sorrisos.

Não era nova, mas era viva. Voava com uma rapidez que impressionava. Batia as asas milhares de vezes por minuto. Ia de flor em flor acariciando a cada uma com o mesmo cuidado. Cuidava do seu ninho e do seu companheiro com dedicação única. Era lindo ver aquele beija-flor voando. Às vezes cansava-se e fingia que não estava cansada, que apenas queria pousar um pouco. Fazia isso para que ninguém dissesse a ela que ela deveria parar de voar. Ela não conseguiria. Voar e beijar as flores era o que ela mais amava fazer.

O menino olhava o beija-flor voando e encantava-se. Queria retribuir o carinho que mesmo ele, recém-chegado, ganhava sem distinção. Queria dizer a ela o quanto seu voo era bonito, o quanto aprendia com seu desapego, com sua dedicação, com sua forma direta e honesta de ser. Queria dar algo pelo tanto que recebia.

E o menino visitou a serra da menina muitas e muitas vezes. E o beija-flor sempre estava lá. Parece um bibelô diziam. Era de uma delicadeza sem nome, sem comparação. Era a alma daquele lugar. E batia as asas com um esforço que só ela conhecia e que escondia atrás de um sorriso bem a sua maneira. De vez em quando cedia ao cansaço e todas as flores vinham rápido de onde estivessem acudir o beija-flor. Davam carinho, davam beijos, davam conselhos e amor e o beija-flor retribuía com um olhar de dever cumprido. Recebia o carinho e os beijos com doçura, dispensava os conselhos e compartilhava o amor. Suas flores estavam grandes, bonitas e inteiras. Ela tinha orgulho de cada uma delas e dos beija-flores que vinham lhes cuidar.

O menino se emocionava. Via um amor sem igual. Ele nunca teve aquilo, nunca tinha visto aquilo. Sua referência era outra, menos viva, menos bela, menos intensa. Menos.

Um dia recebeu a notícia que o beija-flor havia voado para longe e que não voltaria mais. Descansaria em um mundo de flores, onde a chuva não lhe causaria mais medo, onde não haveria raios ou trovões. Onde poderia bater suas asas com a força de sempre e cuidar de todas as suas flores com o mesmo amor que um dia fez dela um beija-flor.




segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Labirinto


Um grande labirinto. O menino pensava que a vida era um grande labirinto. Ele já estava andando havia muito tempo. Seguia seu rumo, sem rumo e entrava em todas as entradas em que podia entrar. Entrava por uma porta linda, cheia de flores e cheiro de mato e seguia certo de que esse era o caminho, mas não era. Voltava ao início e buscava novas entradas. Entrava em outro canto, meio escuro, mas interessante e desafiador. Seguia por entre estrelas e lugares diferentes que não o levavam a lugar algum, a não ser de volta ao início.

O menino sentia-se perdido, cansado de errar, mas disposto a continuar tentando. A cada novo caminho que ele seguia, encontrava algo de novo, algo que ele não conhecia e aprendia. Entrou em caminhos curtos e em caminhos longos e acabou sempre voltando ao início. Olhava para a entrada e pensava com ele mesmo: “eu jurava que esse era o caminho certo...” Descansava um pouco e voltava a procurar a porta que o levaria ao seu destino.

Uma vez adormeceu enquanto descansava. E no sonho lhe apareceu uma luz. Tentou olhar, saber quem era aquela luz, mas não conseguia. Era de várias cores. Pulsava como uma estrela. Tinha um brilho forte, bonito. Sentia que a luz era cheia de vida. Ela flutuava a sua frente como quem quisesse mostrar o caminho, pensava ele.

- Luz tão bonita, que bom que veio me ver. Será que você pode me mostrar o caminho certo?
- Menino sonhador, não existe caminho certo.
- Então estive perdido esse tempo todo à toa?
- Claro que não. Você esteve o tempo todo seguindo seu coração. Isso não é pouco.
- Mas, e o caminho que eu busco? Como seguir se não há caminho certo?
- Fazendo seu próprio caminho menino, fazendo seu próprio caminho...

E as palavras ficavam no ar enquanto a luz parecia ir para longe. O menino queria seguir a luz, mas não conseguia. Estava paralisado, tentando entender o que havia acontecido. Acordou ainda assustado com o que tinha acontecido. Era dia claro. Olhou para o lado e viu que o lugar de onde ele sempre partia e para onde ele sempre chegava estava muito mal cuidado. Uma grande bagunça. Resolveu que iria arrumar aquilo tudo antes de tentar de novo. Quem sabe assim ganhasse tempo para entender o que a luz dissera.

Começou por recolher do chão as memórias que trazia de cada um dos caminhos que havia seguido. Encontrou uns guardanapos e já ia jogá-los fora quando viu que em cada um deles havia algo escrito. Sentou-se e começou a abri-los com cuidado. Eram poesias, pequenos versos que ele mesmo havia escrito nas mesas dos bares por onde esteve nos primeiros caminhos que escolheu seguir. Riu de si mesmo e dos fragmentos de emoção que ele havia tido a coragem de escrever ali. Guardanapos de bar, pensava ele. Que tipo de gente escreve poemas em guardanapos? E riu, se dando conta que ele era o tipo de gente que fazia isso. Guardou os guardanapos com cuidado e voltou para a arrumação.

Outros papéis lhe chamaram a atenção. Estavam em um canto, quase amarelados. Estavam dobrados e tinham pequenas marcas nos cantos. Eram coloridos e ele parou novamente para ver do que se tratava. Abriu o papel verde claro e encontrou uma mensagem de realejo. A marca era do bico do periquito que havia escolhido sua sorte. Na sua memória, o som gostoso do realejo voltou correndo, e ele sentou-se para ler o que o futuro lhe reservara. Eram coisas boas e ele sorriu um sorriso de menino. E guardou os papéis, com carinho, em um lugar bem especial.

Parou novamente e pensou em tomar um café. E um cheiro de café queimado com açúcar invadiu o ambiente. E ele fechou novamente os olhos e lembrou-se da cozinheira da casa dos seus avós que pingava o café no fundo de uma pequena panela e o fervia com açúcar para se deliciar com o sabor forte e com o cheiro doce. O sabor lhe voltou fácil. Fez e tomou o café da mesma forma que a velha cozinheira havia lhe ensinado nos caminhos de criança. Ganhou ânimo para continuar e voltou à arrumação.

E pelo tempo em que se dedicava a varrer, encontrar e guardar lembranças, jogar fora o que não prestava para nada, passar pano para polir as melhores memórias, ele se dava conta do tanto que havia caminhado. Quantas lembranças, quantas memórias, quantos sabores, cheiros, visões, sonhos, fantasias. Quanta coisa...

E quando acabou de colocar a última lembrança no lugar devido, assustou-se. Uma luz invadiu o lugar, a mesma luz dos seus sonhos e ele sabia que não estava mais dormindo.

- Você fez um belo trabalho aqui.
- Era preciso
- Sim, era preciso para que você pudesse encontrar seu caminho certo.
- Mas não sai do lugar! O que você quer dizer com isso?
- Que já não há mais portas. Não há mais idas e vindas. É só seguir em frente. Seu caminho é onde você quiser ir. Você não precisa mais se perder para se encontrar.