No imaginário do menino cabe de tudo, muito. Ele acorda feliz
imaginando que há um pássaro na janela cantando só para ele. Olha o dia
clareando imaginando o voo de cada raio de sol como se fossem fadas
descortinando o horizonte. Ele ouve o silêncio imaginando que talvez haja lá
algum recado para ele. Toma seu banho de olhos fechados e deixa a água bater
nas pálpebras apenas para se imaginar em uma cachoeira. E segue seu dia com
devaneios de fantasia que o fazem sorrir sem que os outros entendam a razão.
Por entre as suas fantasias preferidas está o circo. Não o circo de
hoje com nomes difíceis e efeitos eletrônicos. O circo que ele adora fantasiar
é o circo da sua infância, montado em lona e madeira, com direito a mestre de
cerimônias e picadeiro. Muitas vezes ele torce para dormir e sonhar com esse
circo.
...
- Boa noite meu filho, sonhe com os anjos!
- Boa noite mamãe, mas eu prefiro sonhar com o circo...
- Combinado, mas então dorme com os anjos menino...
...
- Respeitável público! O Grande Circo Fantasia tem o enorme prazer de
apresentar a família Tommasini. Diretamente da Itália para o nosso picadeiro,
eles vão subir em plataformas de dez metros de altura e se lançar no ar, de um
trapézio para o outro, sem nenhuma proteção. Por favor, façam silêncio e
aproveitem o show.
A família tinha cinco membros. O pai e a mãe, um tio e um casal de
filhos. Mas quem chamou mesmo a atenção do menino foi a filha. Era como se o
holofote do circo estivesse iluminando apenas ela, vestida com uma espécie de
roupa de ginástica combinada com uma de bailarina, a pequena menina agradecia
os aplausos e começava a escalar o mastro que sustentava a lona principal da
grande tenda.
Aos poucos, ela foi ficando ainda menor, aos olhos do menino aflito que
sentado cada vez mais à beira do seu assento. O mestre de cerimônias pediu silêncio
novamente. Tambores rufaram, como só rufam os tambores de circo, criando um
clima de suspense e expectativa no ar. O pai lançou-se no ar com a coragem de
um animal selvagem e ficou preso apenas pelas mãos em um trapézio que fazia o
menino lembrar do balanço de sua praça. Do outro lado o tio prendeu-se pelas
pernas em outro trapézio e foi dançar no mesmo ar que seu irmão querido. O pai
tomava impulso, o tio estendia as mãos e num momento mágico o pai soltou seu
trapézio para flutuar de encontro às mãos seguras de seu irmão. O silêncio
ensurdecedor foi quebrado por um suspiro coletivo de alívio. Com outro impulso
o pai alcançou a plataforma e foi aplaudido com emoção por todos.
Em seguida o filho seguiu os braços do pai e realizou alguns movimentos
de ballet em pleno ar, sem que o menino prestasse a menor atenção.
A mãe preparava a filha para sua participação. Deu m beijo carinhoso e
assumiu a mesma posição do tio. Presa pelas pernas, jogou-se no ar e tomou
impulso, até que ao passar pela plataforma pela quarta vez segurou a filha
pelos braços estendidos e a levou para o passeio mágico. Cessaram as
respirações. O menino sentia seu coração batendo mais alto e mais forte que os
tambores do início. De um salto a menina lançou-se para o alto, quase tocando a
lona, deu duas cambalhotas em torno dela mesma e voltou aos braços da mãe. O menino
percebeu que ela sorria. Logo em seguida, com mais duas ou três idas e vindas a
menina jogou-se na direção do tio orgulhoso da proeza. Na saída, ela ainda deu
mais uma cambalhota e uma pirueta mágica para cair de pé na plataforma, ao lado
do seu pai! O circo vibrou e aplaudiu a cena mágica, como que agradecendo pelo
fim da agonia que só os trapezistas conseguem provocar.
O coração do menino, no entanto, continuava batendo forte. Seus olhos
não desviavam um só segundo da menina voadora. E ele pensava: - quero voar
também!
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